António Vitorino: "Não podemos aceitar que se criem ilusões de que é simples entrar na Europa"

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O diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações falou com a Euronews sobre a crise migratória na União Europeia e os desafios que se impôem aos Estados-membros.

O número de requerentes de asilo que chegam à Europa disparou. Este ano, mais de 40 mil pessoas sem documentos atravessaram o Mar Mediterrâneo contribuindo para uma das taxas mais elevadas desde a crise migratória de 2015. Nos primeiros três meses de 2023, morreram ou desapareceram cerca de 700 pessoas.

Para discutir esta nova crise iminente, a Euronews falou com António Vitorino, diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações (OIM).

Anelise Borges, Euronews: Na realidade não é uma crise nova e iminente, mas sim mais um capítulo da crise humanitária que acontece na Europa há mais de oito anos. O que é que a sua organização está a testemunhar especificamente no Mediterrâneo Central?

António Vitorino: O Mediterrâneo Central tem sido uma rota de crescimento constante para a Europa. Mesmo durante a pandemia, os números continuaram a aumentar. E como disse, os números dos primeiros três meses deste ano são quatro vezes superiores aos do ano passado no mesmo período.

Portanto, é bastante claro que há uma série de rotas para a Europa de migrantes que estão a chegar agora, principalmente para Itália. E Itália está sobrecarregada com esta pressão.

A.B.: Quero ler algo que a OIM divulgou: "Atrasos nos salvamentos conduzidos pelo Estado na rota do Mediterrâneo Central foram um fator em pelo menos seis incidentes (naufrágios) este ano, levando à morte de pelo menos 127 pessoas. A ausência total de resposta a um sétimo caso custou a vida de pelo menos 73 pessoas". Diria que os governos europeus têm sangue nas mãos?

A.V.: Creio que existe uma necessidade urgente de os Estados-membros europeus levarem a sério uma proposta que a própria comissão apresentou para abordar as três questões-chave em jogo: primeiro, as pessoas precisam de ser impedidas de embarcar - em viagens perigosas - e isso depende da cooperação com os países de partida. Em segundo lugar, há necessidade de uma iniciativa liderada pelo Estado sobre busca e salvamento - não podemos deixar isso apenas às ONG - e, claro, precisamos de evitar que as pessoas morram no Mediterrâneo. E em terceiro lugar, e isto é muito importante, há necessidade de ter previsibilidade nos pontos de desembarque porque não podem simplesmente ir para o porto mais próximo e há necessidade de estabelecer um rápido processo de realojamento para não sobrecarregar os países que estão geograficamente expostos.

É bastante claro que o progresso na adoção dos instrumentos jurídicos do Pacto [sobre asilo e migração] não progrediu assim tanto.
António Vitorino
Diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações

A.B.: É interessante o que diz sobre a coordenação quando se trata de receber estas pessoas... os portos de desembarque. Não trabalho nesta questão há tanto tempo como o senhor, mas sinto-me bastante desanimada ao ver que nada parece mudar, ano após ano. É quase como se pudesse usar as mesmas palavras, as mesmas imagens, para descrever a situação ano após ano. Compreende a União Europeia, foi comissário europeu, por que pensa que isso acontece? Por que é que os governos europeus não se podem juntar para abordar esta questão?

A.V.: De facto, tem razão. A Comissão Europeia apresentou a proposta de um pacto sobre asilo e migração para ter uma abordagem comum e normas comuns entre todos os estados-membros da União Europeia. É bastante claro que o progresso na adoção dos instrumentos jurídicos do Pacto não progrediu assim tanto. Isto mostra que ainda existem diferenças na perspetiva, em como a migração é vista por diferentes Estados-membros. Mas o meu ponto-chave é que nenhum país sozinho pode enfrentar o desafio. Só trabalhando em conjunto poderemos ter sucesso. Por isso, penso que é absolutamente necessário exercer uma forte pressão sobre as instituições europeias e sobre os Estados-membros europeus para se chegar a uma abordagem conjunta.

A.B.: Em termos dos dados que recolhe e das áreas que está a monitorizar especificamente na Europa, há sítios que o preocupam mais neste momento?

A.V.: Tivemos uma crise muito grave, na Bielorrússia, na fronteira com a Polónia. E deixei muito claro que condenamos qualquer tipo de instrumentalização de migrantes e refugiados por um Estado para fins políticos. Este tipo de situações não pode voltar a acontecer, não podemos aceitar que se criem ilusões para pessoas em desespero, a ideia de que é simples e rápido entrar num outro país, ou na Europa. É uma violação do direito internacional, uma violação dos direitos fundamentais dos migrantes e refugiados. E o que aconteceu não pode voltar a acontecer.

A.B.: Em termos de lição positiva que a Europa tem mostrado ao mundo ao abordar as rotas migratórias - e as opções legais para as pessoas se deslocarem - eu diria que a guerra na Ucrânia tem servido como um bom exemplo do que pode ser feito quando os países se juntam e tentam encontrar um plano coeso. Mas tem havido muitas críticas em relação a isso porque algumas pessoas - e estou a citar ativistas e trabalhadores humanitários - dizem que parece haver um duplo padrão. Quando os refugiados se assemelham a nós, quando têm a mesma religião que nós, são bem-vindos. O que diz em relação a isso?

A.V.: Creio que a utilização da Diretiva de Proteção Temporária que apresentei quando era comissário, em 2020, e que foi depois aprovada, provou ser um instrumento muito eficaz de solidariedade, de apoio. Mas é uma situação muito desafiante, porque se trata de pessoas traumatizadas pela guerra, pessoas vulneráveis a abusos, à exploração, particularmente mulheres e crianças. E é preciso encontrar os recursos necessários para apoiar uma longa estadia nos países de acolhimento, porque agora já passou mais de um ano após o início da invasão russa e as perspetivas de regresso à Ucrânia não parecem estar ao virar da esquina, porque as pessoas só podem regressar quando as condições de segurança estiverem reunidas, a fim de reconstruir a Ucrânia, o que vai ser muito necessário.

Há mais pessoas deslocadas devido às alterações climáticas, do que devido a conflitos
António Vitorino
Diretor-geral da Organização Internacional para as Migrações

A.B.: Há múltiplas crises graves neste momento, mas há uma que paira sobre todas as outras: as alterações climáticas. Já há algum tempo que falamos sobre isso, em como o clima poderá ser a fonte número um de deslocações de pessoas no futuro, mas temos cerca de 20 milhões de pessoas deslocadas por estes fenómenos todos os anos. Sente que os governos compreendem o desafio que têm pela frente e tomam medidas para tentarem criar um sistema que, pelo menos, permita acomodar estas pessoas deslocadas, que tiveram de abandonar as suas casas?

A.V.: Há mais pessoas deslocadas devido às alterações climáticas, do que devido a conflitos, apesar de muitos países estarem vulneráveis ao clima e com conflitos internos. Portanto, os dois elementos jogam em conjunto, interagem e são desencadeadores de deslocações. Estas pessoas que são afetadas pelas alterações climáticas - 20 milhões por ano, na última década – a maioria está deslocada internamente, mas mais cedo ou mais tarde vão atravessar uma fronteira internacional e serão menos os chamados “migrantes climáticos”. E é por isso que as conclusões de Sharm el Sheikh foram importantes, porque, pela primeira vez na COP 27, foi reconhecido que as alterações climáticas já estão a ter um impacto hoje em dia e a forçar as pessoas a deslocarem-se. E precisamos de lhes fornecer assistência para salvar vidas e depois encontrar soluções duradouras para o futuro.

A.B.: Mas quão longe ainda estamos disso? Porque uma coisa é reconhecer que, sim, de facto existe um problema, certo? Mas quando é que isso vai ser traduzido em ação? E, na sua opinião, ainda temos tempo?

A.V.: Precisamos de agir urgentemente em termos globais sobre as alterações climáticas e em termos concretos para as regiões mais vulneráveis do mundo. E, claro, para isso precisamos de apostar na adaptação, mitigação e construção da resiliência das comunidades. Muitos países já estão a tomar essas medidas, mas o esforço que é necessário vai além da sua capacidade. Portanto, é necessária uma mobilização da comunidade internacional para apoiar esses países.

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