Estará a Rússia pronta a defender uma autocracia amiga que está a sofrer golpe atrás de golpe? Nikita Smagin, especialista em assuntos iranianos, respondeu às perguntas da Euronews.
"A espiral está a torcer-se e a torcer-se". O porta-voz da presidência russa, Dmitry Peskov, afirmou que o Kremlin não vê necessidade de uma mediação russa entre o Irão e Israel, porque simplesmente não existem condições prévias para uma desescalada.
As potências beligerantes, separadas por mais de 2.000 quilómetros, continuam a trocar ataques, com o Irão a perder líderes militares importantes e a ver danificadas as suas instalações militares e infraestruturas nucleares. Donald Trump exige a "rendição incondicional" de Teerão, um ultimato que o Ayatollah Ali Khamenei rejeita.
Ao mesmo tempo, os responsáveis israelitas pressionam Washington a envolver-se no conflito: sem a bomba anti-bunker GBU-57A/B, a central subterrânea iraniana de enriquecimento de urânio de Fordo não pode ser destruída.
Os Estados Unidos, que têm dezenas de milhares de soldados na região, estão a deslocar para o Médio Oriente porta-aviões, dezenas de aviões de combate, aviões de reabastecimento e vários bombardeiros estratégicos. O exército iraniano está a planear ataques a bases americanas como medida de retaliação, se as tropas os EUA se juntarem aos ataques das forças israelitas contra a República Islâmica.
Como é que a Rússia, um dos parceiros mais poderosos de Teerão, se comporta nesta situação?
No fórum de São Petersburgo, Vladimir Putin afirmou que o Irão não pediu ajuda desde o início da campanha aérea de Israel. O presidente russo acrescentou que o tratado de parceria global entre Moscovo e Teerão não tem artigos relacionados com a esfera militar, o que é irónico, se considerarmos a venda à Rússia de uma franquia para a produção de drones Shahed-136 (na sua nova hipóstase, o Geranium-2).
No entanto, não se fala de qualquer assistência em matéria de defesa aérea, de defesa mútua ou de "segurança coletiva" - isto é demasiado "NATO" em geral, e a Rússia, a China, etc., só costumam entrar em alianças para situações específicas.
Numa entrevista à Euronews, Nikita Smagin, orientalista e autor do livro "Todo o Irão", analisou o que está em jogo para o Kremlin. Segundo ele, a Rússia já sublinhou anteriormente que não tem uma aliança militar com o Irão e que não é obrigada a prestar-lhe assistência militar.
"É lógico esperar que a Rússia não interfira no que está a acontecer, porque não quer arriscar, em nome do Irão, o agravamento da situação com Israel e os Estados Unidos", diz o especialista.
Smagin observa que o facto de Teerão ainda não ter pedido a Moscovo uma intervenção militar não é surpreendente. "A República Islâmica foi construída, desde o início, com base nas ideias de soberania", diz, acrescentando que uma das ideias motrizes por detrás da reestruturação do Estado iraniano foi pôr fim à interferência de atores estrangeiros, principalmente os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, nos assuntos internos do Irão.
"Neste sentido, o Irão nunca pediu ajuda à Rússia e não pede agora, porque tem medo de perder soberania, de ceder parte da sua soberania à Rússia, como aconteceu com Bashar al-Assad", diz Smagin.
Mas a situação pode mudar.
"Só porque Putin chamou a atenção para o facto de nem sequer querer pensar no assassinato, na destruição de Khamenei, é óbvio que estas questões o perturbam um pouco", explica o especialista.
"O destino dos líderes autoritários magoa a Rússia"
O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, disse numa entrevista ao canal de televisão norte-americano ABC News que não excluía a possibilidade de remover o líder supremo do Irão, argumentando que isso não levaria a uma escalada, mas"poria fim"às hostilidades em curso.
Segundo Donald Trump, os EUA sabem"exatamente" onde o Ayatollah Ali Khameneiestá "escondido". Acrescentou que o líder iraniano é"um alvo fácil, mas não o vão matar, pelo menos, por enquanto".
Na quinta-feira, a Casa Branca anunciou que o presidente dos EUA decidirá se vai ou não atacar o Irão "dentro de duas semanas".
Se o regime da República Islâmica cair ou se se chegar a destruir fisicamente o Ayatollah, como é que o Kremlin vai reagir a isso? O que é que isso significaria para as autoridades russas?
"De um modo geral, vemos que as mortes em processos revolucionários, a destruição de chefes de Estados autoritários em geral, prejudicam o lado russo. Lembramo-nosde como Putin reagiu ao assassinato de Kadhafi", observa Nikita Smagin. - Os rebeldes foram os primeiros a [atuar] ali, mas não sem a ajuda de forças estrangeiras: os serviços secretos britânicos e os Emirados estavam presentes. Mas, apesar disso, tudo isto parecia ser um sério "alerta" para Putin. E, aparentemente, esta foi uma das razões pelas quais ele começou a mudar o seu posicionamento na arena internacional.
Segundo o analista, se a república islâmica se desmoronar, Ali Khamenei pode vir a receber asilo na Rússia. "É uma prática já estabelecida. Penso que não é de excluir. Mas se Khamenei for eliminado, o Kremlin não ficará contente. Eles acreditam que matar líderes é uma linha vermelha, para além da qual, de facto, Israel já passou. Já eliminou os líderes do Hezbollah, por exemplo", diz.
"Será mais fácil elaborar o orçamento"
A nova crise no Médio Oriente pode afetar a influência da Rússia na região, mas a súbita escalada trouxe ao Kremlin algumas boas notícias. Na cimeira do G7 no Canadá, por exemplo, foi decidido não baixar o limiar do preço do petróleo russo, para não desestabilizar ainda mais o mercado.
Desde o final de 2022, uma das alavancas de pressão sobre Moscovo tem sido o estabelecimento de preços máximos para o petróleo russo em 60 dólares por barril. Três anos após o início da invasão russa da Ucrânia, a UE propôs baixar o preço máximo para 45 dólares por barril, mas terá de esperar por agora.
"Se considerarmos a desintegração do Irão como um todo, ou melhor, a mudança de regime, porque a desintegração [do país] já é concomitante, então, claro, isso ameaça os interesses da Rússia a longo prazo", diz Nikita Smagin.
"O Kremlin espera, evidentemente, beneficiar com isso a curto prazo: os preços do petróleo vão subir muito seriamente. Quanto pior for a situação, mais altos serão os preços e mais fácil será a elaboração do orçamento [russo] - este ano, pelo que parece, poderá haver problemas", explica o analista.
Segundo Smagin, a Rússia beneficiará no momento atual, mas, a longo prazo, a mudança de regime e"a transformação do Irão num ponto permanente de instabilidade ameaçam, evidentemente, a estratégia russa no Médio Oriente, porque foram investidos muitos esforços no Irão".
"O Irão tem sido um parceiro fiável do Kremlin em muitas frentes ", afirma. - Muitos projectos, e estrategicamente importantes, foram planeados para serem conduzidos através do Irão, por exemplo, o projeto [corredor de transporte] Norte-Sul, um possível centro de gás. É claro que tudo isto é para o futuro, mas, no entanto, em caso de [colapso do regime], não haverá possibilidade de o realizar. A longo prazo, será uma perda e um revés para o lado russo".
"O auge da cooperação militar da Rússia com o Irão já passou há muito tempo"
Em mais de três anos de guerra em grande escala, a Rússia conseguiu "localizar" a produção de drones de conceção iraniana.
Segundo Nikita Smagin, a importância do Irão como fornecedor de drones Shahed-136 pertence ao passado. O auge da cooperação militar entre os dois países ocorreu em 2022. Como observa o especialista, no início do ano passado, até 90% dos componentes não eram iranianos."Apenas os motores foram fornecidos pelo Irão. Tudo o resto foi feito pelas forças russas", acrescenta.
"Mesmo que a localização não seja agora de 100%, está muito próxima disso. Penso que a Rússia encontrará formas de o substituir, para não falar do facto de os Shaheds já não desempenharem um papel tão importante como antigamente. Ainda assim, existe uma enorme quantidade de desenvolvimento interno. A Rússia tem vindo a investir em drones durante este período", explica Smagin.
"Além disso, mesmo que estejamos a falar especificamente do Shahed, ele já nem sequer é fortemente iraniano. Os drones Geran-1 e Geran-2 foram muito redesenhados, porque a versão iraniana não era tão eficaz como muitos esperavam", observa.
Numa entrevista ao Kommersant, Ruslan Pukhov, diretor do Centro de Análise de Estratégias e Tecnologias, descreve as características de voo dos Shaheds como"primitivas" e"permitindo que sejam abatidos em massa mesmo com metralhadoras antiaéreas de 7,62 mm". Escreve também que o "ciclomotor" "alerta toda a vizinhança para a chegada do drone".
"Em Israel, o papel de mediador da Rússia é encarado sem antipatia aparente"
Como escreve Hannah Notte, cientista política e freelancer sénior do Centro James Martin para Estudos de Não Proliferação. A Rússia sempre teve limitações quanto ao apoio que pode dar ao Irão.
A obsessiva agenda antiocidental do Kremlin elevou o perfil da república islâmica como parceiro, mas Putin tem outros interesses na região - como uma relação de longa data, embora complicada, com Israel e a necessidade de coordenar os preços do petróleo com a OPEP - pelo que tem tido em conta as linhas vermelhas de Israel e dos Estados do Golfo no que diz respeito à cooperação com Teerão no domínio da defesa.
Nikita Smagin considera que, no atual conflito entre o Irão e Israel, a Rússia já não é um mediador"indispensável".
"Quando as negociações nucleares estavam em curso, quando Trump estava a tentar assinar um acordo nuclear com o Irão, a Rússia podia agir como um mediador indispensável", diz. - A Rússia era, de facto, a única parte que tinha capacidade técnica e estava pronta para exportar o urânio excedentário do Irão - de grau pré-armas ou enriquecido para além da percentagem mínima exigida. Agora, aparentemente, esta questão está fora da agenda".
Ao mesmo tempo, apesar de as relações entre Israel e a Rússia, que se tornou o primeiro país do mundo a receber oficialmente uma delegação do Hamas após os atentados de 7 de outubro, se terem deteriorado, segundo Nikita Smagin, Telavive e Jerusalém encaram o papel de mediador da Rússia "sem qualquer antipatia evidente".
O especialista observa que, mesmo depois de 2022 e do início das vagas de emigração de russos antiguerra para o estrangeiro,"surgiu no Estado judaico uma grande camada de agentes de influência antirussa, ou seja, pessoas que se mudaram da Rússia e que têm uma atitude muito negativa em relação às autoridades russas e que são, obviamente, a espinha dorsal dos sentimentos antirussos em Israel".
Segundo ele, os novos colonos, "naturalmente, não apoiarão a opção" com a mediação de Moscovo. Mas, de um modo geral, segundo o especialista, "se estamos a falar da liderança israelita, esta não olha para a Rússia como algo impossível. O Qatar, penso eu, não é mais apoiante de Israel do que a Rússia".
"No caso de algumas negociações em grande escala entre Israel e o Irão ou entre os EUA e o Irão, pode haver mais do que um mediador. Como foi o caso, em muitos aspetos, das recentes negociações sobre o acordo nuclear que acabou por não ser assinado. De um lado, estava Omã. Por outro lado, houve também rondas na Europa. Por isso, é possível que haja mais do que um participante", resumiu o especialista.