Europeus querem o fim da covid-19. Mas ela não chegou ao fim

É oficial: A pandemia de covid-19 terminou. Ou será que não?
Após dois anos de ansiedade, caos, fadiga e, muitas vezes, tédio, os europeus parecem ter decidido ultrapassar coletivamente a pandemia que abalou todos os aspetos da sua vida quotidiana, desencadeou uma crise económica e transformou os hábitos profissionais e pessoais.
A Europa está farta de restrições de viagens, de recolher obrigatório, de confinamentos e certificados digitais. E, caídas as máscaras, começam as festas: o Carnaval de Veneza, o Festival de Glastonbury e a Oktoberfest, em Munique, estão de volta, ansiosos por recuperar o tempo perdido.
A mudança é há muito aguardada; desde que a primeira vaga de infeções por coronavírus começou a diminuir, em meados de 2020, os europeus têm estado impacientemente à espera da oportunidade perfeita para virar a página e apagar da memória todos as zaragatoas.
Mas a desejada transição foi repetidamente adiada pelo aparecimento de novas e cada vez mais contagiosas variantes do coronavírus e o subsequente restabelecimento de medidas de confinamento, numa dinâmica que rapidamente produziu uma sensação generalizada e vertiginosa de déjà vu.
Quando chegou a notícia de que a variante altamente infecciosa Ómicron estava de facto a causar sintomas relativamente leves e controláveis, muitos viram o fim mais próximo do que nunca.
Encorajados por uma implementação com sucesso da vacinação, os países europeus começaram a levantar gradualmente regras, limitações e regulamentos, até os tornarem marginais e, em alguns casos, simbólicos.
Espanha, uma das nações mais afetadas pela pandemia, revogou o decreto de dois anos que impunha o uso obrigatório de máscaras em espaços exteriores e interiores, relegando a prática apenas para os transportes públicos e unidades de cuidados de saúde.
A Áustria revogou as chamadas "regras 3G" (que impunham a apresentaço de um comprovativos de vacinação, recuperação, ou teste com resultado negativo) para entrar em restaurantes e bares.
Já França aboliu completamente o seu "passe verde", uma iniciativa pioneira que inspirou outros países a seguir o exemplo, mas alimentou semanas de descontentamento popular.
Alemanha, Bélgica, Países Baixos, Suécia, Polónia, Roménia, Hungria, Irlanda e Reino Unido também puseram termo a todas, ou quase todas as restrições.
A Dinamarca deu mais um passo em frente quando se tornou no primeiro país europeu a suspender o programa de vacinação contra a covid-19, argumentando que a taxa de vacinação - mais de 82% da população teve duas administradas - é suficiente para conter a pandemia na sua fase atual.
"Estamos num bom momento. Chegou a primavera e temos um bom controlo da epidemia, que parece estar a diminuir", disse Bolette Søborg, uma das responsáveis da Agência de Saúde Dinamarquesa (SST).
A SST planeia retomar o programa novamente no outono, quando se estima que as infeções aumentem e que novas variantes se possam propagar.
A cascata de desenvolvimentos levou a Comissão Europeia a declarar que a pandemia tinha entrado num novo capítulo, no qual a contagem de cada caso se torna redundante. Em vez de testes em massa, o executivo recomendou que os países se concentrassem em amostras direcionadas e fiáveis para detetar novas variantes.
"Estamos a entrar noutra fase da pandemia", disse Stella Kyriakides, comissária da União Europeia (UE) para a Saúde, em finais de abril. "Uma nova fase que exige que repensemos a forma como gerimos o vírus".
Kyriakides encorajou o prosseguimento da campanha de doses de reforço e assinalou que mais de 90 milhões de cidadãos da UE permanecem não vacinados.
"Muito já foi alcançado, mas a preparação e a resiliência estrutural são fundamentais", acrescentou.
De acordo com a comissária, entre 60 a 80% da população da UE foram infetados pelo vírus, nos últimos dois anos.
Os limites da resiliência humana
Os números absolutos levantam a questão da tolerância que resta aos europeus para lidar com uma doença que atingiu um grau de omnipresença na sua vida quotidiana.
Os governos tornaram-se extremamente conscientes da vontade cada vez menor de os cidadãos suportarem o fardo das restrições, uma constatação que se tornou evidente pela rapidez com que os países avançaram no alívio das medidas excecionais, assim que a vaga de Ómicron atingiu o seu auge, em janeiro.
Os meios de comunicação também parecem estar com pressa para deixar o vírus para trás e mudar a conversa.
A pandemia foi empurrada para fora das primeiras páginas dos jornais para dar lugar à invasão russa da Ucrânia, às sanções internacionais e ao aumento dos preços da energia. No Google Trends é evidente uma diminuição constante do interesse pelo termo "covid-19", nos maiores países europeus.
Mas este esforço conjunto para começar de novo esconde duas verdades incómodas.
Primeiro, a pandemia ainda não acabou. Os europeus continuam a sucumbir à doença diariamente, mesmo que os hospitais já não estejam sobrecarregados (mais de 13 mil mortes foram registadas em abril).
Na Ásia, a Ómicron está a causar estragos, com a China a impor uma estratégia draconiana de "covid-zero", que está a inflamar a ira da opinião pública e a perturbar as cadeias de abastecimento globais.
Em todo o mundo, a desigualdade de acesso às vacinas continua a ser alarmantemente elevada: apenas 15% das pessoas nos países de baixos rendimentos receberam a primeira dose.
"Embora os casos e as mortes registados estejam a diminuir a nível mundial e vários países tenham levantado as restrições, a pandemia está longe de ter terminado. E não vai terminar em lado nenhum até ter terminado em todo o lado", afirmou o diretor da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Gebreyesus, no início de março, ao assinalar os dois anos passados desde que o organismo internacional definiu a covid-19 como uma pandemia.
A segunda verdade mascarada por esta transição súbita é o facto de algumas pessoas não estarem dispostas, nem prontas para esquecer o vírus, pelo menos não tão depressa. Em alguns casos, o trauma de viver dois anos num estado de alarme constante pode revelar-se paralisante, apesar de a perspetiva geral dar motivos para otimismo.
"A impressão geral é de que as pessoas estão a avançar muito rapidamente e a comportar-se como se a covid já não existisse. Penso, contudo, que este tipo de visão ampla não é comum a todos", afirmou à Euronews Carmine Pariante, professor de psiquiatria biológica no King's College, em Londres.
"O nível de ansiedade da população em relação à covid ainda é muito elevado. Há muitas pessoas que ainda se debatem com a socialização em grupo, com ir a restaurantes, ou a lugares movimentados. E mesmo que o façam, sentem uma grande ansiedade em relação a isso. Portanto, a normalização será progressiva".
A saúde mental tem sido uma das principais vítimas do vírus. No primeiro ano da pandemia, a prevalência global de ansiedade e depressão aumentou a uma impressionante taxa de 25%, de acordo com um relatório divulgado, em março, pela OMS.
A organização cita o "stress sem precedentes causado pelo isolamento social" como o motor por trás dessa tendência preocupante, sobretudo se aliado a solidão, medo de infeção, luto, problemas financeiros e, no caso dos trabalhadores essenciais, esgotamento físico.
As cicatrizes na saúde mental serão a longo prazo e de longo alcance, alertam os especialistas, e persistirão nas nossas sociedades, à medida que as infeções continuarem a diminuir. Caberá aos governos decidir quanto destaque - e, mais importante, quanto investimento - darão ao vírus e aos seus efeitos, nos próximos anos.
Estas decisões políticas determinarão, por sua vez, a rapidez com que a consciência coletiva se vai distanciar da doença mortal e entrar na era pós-covid, diz Pariante.
"Se os líderes [nacionais] retirarem completamente a covid-19 da agenda, então, penso que também a esqueceremos", acrescenta o professor.
"Mas haverá muitas pessoas vulneráveis que vão ser afetadas pelas consequências da pandemia durante muito tempo, mesmo que a sociedade em geral possa ressuscitar".