Fahed e Adam estudaram em Haifa, a “cidade ocupada”. Criaram uma startup com o objetivo de promover livros, escritores e artistas palestinianos. Entre o conflito da guerra em Gaza e a opressão do lado israelita, é possível criar. Os dois querem que a sua empresa cresça e “se torne um unicórnio".
Dois jovens empreendedores palestinianos criaram o projeto Adonis, um portal online de compra e venda de livros e arte, diretamente do artista para o comprador (D2C). Sem intermediários, querem ajudar a promover a cultura palestiniana a partir da cidade de Haifa, no norte de Israel, onde se graduaram em Ciências da Computação.
Apesar da opressão das autoridades israelitas sobre a comunidade palestiniana, dizem que é possível viver na cidade: a vida cultural em Haifa é “vibrante”, com “feiras do livro” e “festivais de arte”. E por essa razão, Fahed Abboud (29 anos) e Adam Shibli (24 anos) querem continuar a conectar árabes e judeus, trabalhar e fazer algo juntos, apesar de a “liberdade [para os palestinianos] não ser total”, reconhece Fahed, o criador da Adonis.
“Levo uma vida normal e já me acostumei a isso”, acrescenta Adam, natural de Shibli. “Nasci e cresci a viver dessa maneira; não sei viver de outra forma. Trabalhamos principalmente com a comunidade árabe. A maioria de nós vive nessa comunidade”, em Haifa, diz o jovem de 24 anos.
Não são raras as vezes em que os palestinianos sentem na pele a opressão das autoridades israelitas. “Sim, temos algumas questões políticas”, sublinha Fahed. Em abril, a cantora Lina Makoul, cidadã palestino-israelita de 31 anos, foi proibida de atuar em eventos organizados pela câmara, depois de afirmar que Haifa “fica na Palestina”.
Adam Shibli critica que Israel não quer que os árabes se envolvam na política, “eles querem que nos concentremos no trabalho e na vida em geral, sem nos envolvermos em política, sem demonstrarmos qualquer apoio aos palestinianos em Gaza. É claro que as pessoas fazem o contrário. Estamos sempre a demonstrar o nosso apoio e a angariar fundos na comunidade para ajudar o nosso povo. Para ajudar o povo de Gaza”, enfatiza o jovem de 24 anos.
“É algo diário. Em Israel, a direita está no poder neste momento, por isso, todos os dias há uma nova lei, uma nova política para nos tornar um pouco mais difícil levantar a nossa voz, como eles dizem", acrescenta.
Contudo, “viver em Haifa é bom. Temos o mar. Temos pessoas boas. Além disso, temos vida e diversão noturna. Temos muitas opções para escolher”, reconhece Fahed, licenciado em Ciências da Computação.
Com mais de 220 mil habitantes, Haifa tem o porto mais importante para a economia de Israel. É o maior do país e um dos maiores portos do Mediterrâneo oriental. Possui muitos terminais de carga com capacidade para despachar vários navios simultaneamente. Cerca de 20 milhões de toneladas de carga passam pelo porto todos os anos. O porto ainda dispõe de um moderno terminal de passageiros, com capacidade para receber grandes navios de cruzeiro.
No final do período otomano, Haifa era um dos centros mais importantes do comércio e das redes sociais da região. Já no século XX, sob a jurisdição da coroa britânica, a sua população cresceu devido ao aumento da imigração judaica e à formação de colonatos judaicos na cidade.
Em 1948, Haifa foi palco de uma forte disputa durante a guerra Israel-Palestina, com as forças judaicas a levarem a melhor sobre os árabes, que se renderam em abril do mesmo ano. Milhares foram forçados a abandonar as suas casas. Os que ficaram aprenderam a viver em conjunto. “Antes da guerra, as pessoas costumavam casar entre si. Continuam a ser a mesma nação, o mesmo povo. Mas, de alguma forma, dividiram-nos. Separaram-nos”, completa Adam.
Haifa é hoje um polo cosmopolita que mistura árabes muçulmanos e cristãos maronitas, judeus e bahá’is. É a sede do Technion, o Instituto de Tecnologia de Israel, da mais antiga universidade do país (fundada em 1912). Foi ali que Fahed e Adam se conheceram, se graduaram e surgiu a ideia da livraria Adonis, exclusivamente online.
“Comecei a trabalhar no projeto Adonis há cerca de 7 anos. Quando publiquei o meu segundo romance”, diz Fahed, também escritor.
“Deparei-me com alguns desafios relacionados com o marketing e a promoção de um livro local. Tinha duas opções: sentar-me na rua e chorar ou dizer: “Temos aqui uma aplicação onde posso colmatar a lacuna e vejo potencial para criar algo novo e resolver todos os problemas. Criei um site chamado Adonis e comecei a ligar para os meus amigos e contactos que sabia que tinham publicado livros de forma independente”, explica Fahed.
Uma livraria online com o objetivo de vender cultura e arte palestiniana
O site começou com “oito livros” e foi crescendo “lentamente”. Fahed queria construir “algo novo para a cultura e também para os escritores” palestinianos com “foco direto do escritor para o leitor” (D2C), ou seja, sem intermediários. “Como sou da Palestina, posso trabalhar com escritores palestinianos”, explica.
“Trabalho com escritores palestinianos baseados na Palestina e, após alguns anos, deparo-me sempre com os mesmos problemas, não apenas para os leitores, mas também para todos os artistas, artesãos, pintores e escultores palestinianos. Todos têm dificuldades em “promover o seu próprio trabalho, em vender”. Assim, surge a Adonis para resolver problemas logísticos e financeiros e oferecer um serviço pós-venda.
Há dois anos, o projeto começou a crescer, alargando o foco em livros para outros criadores culturais palestinianos, permitindo que trabalhassem juntos e colaborassem em comunidade.
No ano passado, um novo passo: a “transição de um pequeno negócio para estudantes para uma startup que começa a funcionar”, garante Fahed, que já está em conversações com escritores palestinianos, fora de Gaza e da Cisjordânia, que vivem em outros países, como a Jordânia e o Reino Unido.
“Estamos a desenvolver uma solução de impressão a pedido para os artistas que terão de aderir à plataforma. Os clientes, que já temos em vários lugares do mundo, incluindo países árabes, compram essas impressões diretamente no site”, explica Fahed à Euronews, desde o Pavilhão 2 da Web Summit, realizada entre 10 e 13 de novembro em Lisboa.
Os dois empreendedores vieram à capital portuguesa apresentar a sua startup pelos seus próprios meios — “as nossas poupanças”, confirma Adam — e não se arrependem.
“A minha experiência na Web Summit foi emocionante, pois pude trocar ideias com outras pessoas para ajudar a aumentar a consciência sobre a cultura e o património palestinianos”, diz Adam. “E também obter dicas, principalmente de fundadores e investidores”, prossegue.
“Muitos portugueses apoiaram-nos a aderir a alguns fundos de impacto ou a startups. Chamam-lhes 'aceleradores'. Sim, tem sido benéfico”, responde o jovem empreendedor de 24 anos.
Por entre a imensidão de expositores Beta e Alpha e os enormes stands das grandes marcas tecnológicas do mundo, espalhados pelos 4 pavilhões da FIL, encontramos a Adonis. Valeu a troca de mensagens pela app da organização e a bandeira da Palestina com o título: "Haifa, Palestine".
“Quando as pessoas veem a bandeira da Palestina, esquecem a startup e concentram-se na ‘startup da Palestina’, diz Adam. “Somos uma startup da Palestina e tenho orgulho disso, mas também somos uma startup”, sublinha Fahed. “Tudo o que aconteceu nos últimos dois anos [em Gaza] é legítimo para que as pessoas fiquem chocadas”, lembra o empreendedor de 29 anos, que diz compreender, mas, ao mesmo tempo, quer tornar o projeto Adonis numa empresa global para crescer e ajudar outros projetos culturais.
O plano, segundo os seus criadores, é que a Adonis se torne um unicórnio para patrocinar todos os eventos culturais no Médio Oriente e em toda a região MENA, “sem se preocupar com o retorno financeiro”.
A Adonis foi a única startup palestiniana presente na décima edição da Web Summit em Lisboa. Os seus fundadores esperam voltar no ano seguinte, "com uma equipa maior".
“Uma das coisas que quero mostrar é que, na Palestina, não temos apenas guerra e genocídio. Temos também arte, amor, vida, cultura, história, literatura e é isso que escrevo nos meus livros”, conclui Fahed.