Desde o cancelamento de projetos solares até ao aumento da poluição, o impasse político americano está a prejudicar os objetivos climáticos.
Quando o governo dos Estados Unidos (EUA) encerrou há duas semanas, processo conhecido em inglês como shutdown, o mesmo aconteceu com partes da sua agenda climática.
Milhares de trabalhadores federais foram mandados para casa, milhares de milhões de euros em subsídios para energias limpas foram congelados e o maior parque solar planeado para o país foi apagado das contas do governo.
Os analistas dizem que o encerramento marca um abrandamento no já incerto progresso climático do país, mas também serve para lembrar que o caminho do mundo para o "net zero" pode facilmente depender de caprichos políticos - ou mesmo de algo tão mundano como a aprovação de um orçamento.
Desaparecimento de um mega-projeto solar
O Esmeralda 7, um conjunto de sete parques solares a construir em mais de 25 000 hectares de terrenos federais no deserto do Nevada, deveria gerar até 6,2 gigawatts de energia, o suficiente para abastecer dois milhões de casas.
Durante a administração Biden, a central tornou-se um símbolo da ambição do país de modernizar o seu cabaz energético, face à crescente procura por parte das empresas de Inteligência Artificial (IA) e das cidades em rápido crescimento.
Mas na semana passada, após o encerramento do governo federal, a Agência de Gestão de Terras dos EUA (BLM) mudou discretamente o estado do projeto de "pendente" para "cancelado" no seu site de licenciamento.
O Departamento do Interior negou que o Esmeralda 7 tenha sido cancelado. Em vez disso, os seus porta-vozes explicaram que os empreiteiros poderiam voltar a apresentar propostas para partes individuais do projeto.
"Durante as discussões de rotina que antecederam a interrupção das dotações, os proponentes e o BLM concordaram em alterar a sua abordagem para o Projeto Solar Esmeralda 7 no Nevada", afirmou um porta-voz do Departamento do Interior num comunicado.
"Os candidatos terão agora a opção de apresentar propostas de projetos individuais ao BLM para analisar mais eficazmente os potenciais impactos".
O cancelamento tem atraído críticas cada vez mais raras de todos os quadrantes da política americana. Os senadores democratas do Nevada alertaram que a decisão prejudicaria empregos e investimentos, enquanto o governador republicano do Utah, Spencer Cox, disse que seria "como a corrida armamentista de energia de IA com a China".
Os ambientalistas dividiram-se.
Alguns argumentaram que as instalações solares ameaçariam os habitats de espécies como a tartaruga do deserto e a árvore Joshua, bem como os locais sagrados dos índios. Mas a maioria concordou que a reversão cria incerteza quando a estabilidade é vital para os objetivos climáticos a longo prazo.
Milhares de milhões em fundos climáticos congelados
O projeto Esmeralda não foi a única vítima.
No mesmo dia em que o shutdown começou, o Departamento de Energia dos EUA cortou quase 7 mil milhões de euros em subsídios e prémios para centenas de projetos de energia verde e infraestruturas - todos em estados que votaram no partido Democrata nas eleições presidenciais anteriores.
Os cortes incluem até mil milhões de euros para uma instalação na Califórnia que trabalha com tecnologia de hidrogénio e cerca de 860 milhões de euros para um projeto de hidrogénio no noroeste do país.
Outros financiamentos cancelados afetam projectos destinados a reduzir as emissões de carbono, a reforçar as redes elétricas e a modernizar os transportes públicos, todos eles cruciais para o cumprimento dos objetivos climáticos.
O congelamento do financiamento poderá também ter um efeito de arrastamento após a aprovação da lei "One Big Beautiful Bill", assinada por Donald Trump em julho.
Os analistas da Energy Innovation, um grupo de reflexão com sede em São Francisco, alertam que a eliminação dos créditos fiscais para as energias limpas pode aumentar a fatura energética das famílias americanas na próxima década e abrandar os progressos no sentido de emissões líquidas nulas.
Dizem também que os EUA poderão perder milhares de milhões em investimentos previstos e centenas de milhares de postos de trabalho, uma vez que as empresas produtoras de energia renovável que beneficiaram de incentivos fiscais procuram no estrangeiro outros locais mais estáveis para construir.
Poluição aumenta quando a supervisão pára
Para além dos projetos cancelados e dos financiamentos parados, as paralisações têm outra consequência menos óbvia: mais poluição.
Um estudo recente publicado por investigadores da Universidade Estadual da Pensilvânia descobriu que, durante o encerramento do governo dos EUA em 2018-2019, as centrais elétricas a carvão emitiram mais partículas finas - partículas microscópicas que têm sido associadas a doenças cardíacas e pulmonares, bem como a mortes prematuras - quando as inspeções federais foram interrompidas.
Com o pessoal da Agência de Proteção do Ambiente (EPA) em licença, as centrais elétricas aligeiraram temporariamente os seus controlos de poluição, revelaram os investigadores.
As conclusões sublinham a importância da supervisão ambiental e a rapidez com que o progresso pode retroceder quando essa supervisão desaparece.
"Mesmo os aumentos de curta duração das partículas têm o potencial de piorar os resultados da saúde pública", afirmou Ruohao Zhang, principal autor do estudo.
"A aplicação estável e a monitorização contínua são ferramentas úteis para garantir o cumprimento, reduzir as emissões e proteger a saúde."
Encerramento expõe arquitetura climática frágil
O sistema de controlo ambiental dos EUA depende da continuidade. Mas durante um lapso de financiamento, a EPA tem de suspender a maioria das ações de monitorização, licenciamento e execução.
Apenas os funcionários cujo trabalho é considerado essencial para "proteger a vida humana ou a propriedade" estão autorizados a continuar a trabalhar. De acordo com o plano de contingência interno da EPA, isso corresponde a apenas 11% dos seus 15.000 funcionários.
Cada interrupção aumenta a "lacuna de aplicação", uma vez que as inspeções são adiadas, os atrasos aumentam e algumas violações ficam impunes.
Embora as alterações climáticas sejam uma questão de longo prazo, os mecanismos para as combater funcionam com base em calendários políticos de curto prazo, e cada lapso pode agravar os problemas que o mundo enfrenta.
"As interrupções nas inspeções e na aplicação da lei têm o potencial de desencadear consequências ambientais e sanitárias imediatas", afirmou Zhang.
Até há pouco tempo, a EPA utilizava os fundos transitados para manter o seu pessoal em atividade. No final da semana passada - dez dias após o início do encerramento - a agência começou a enviar avisos de licença aos trabalhadores. Tim Whitehouse, diretor executivo da organização Funcionários Públicos pela Responsabilidade Ambiental, considerou os despedimentos da EPA "ilegais e moralmente corruptos".
O aviso vai para além de Washington
As implicações para os objetivos climáticos vão muito além dos Estados Unidos.
Sendo o segundo maior emissor do mundo, a seguir à China, a política climática dos EUA influencia os mercados globais, o investimento e a dinâmica de mudança.
Em janeiro, os EUA retiraram o seu plano internacional de financiamento do clima. No início deste ano, os investigadores do MIT informaram que a administração Trump também tinha cancelado as subvenções da Fundação Nacional de Ciência para mais de 100 projetos de investigação relacionados com as alterações climáticas.
Com o encerramento em vigor, muitos outros projetos de tecnologia verde, iniciativas de colaboração e objetivos de investigação que dependem de financiamento federal estão em pausa.
Para os aliados na Europa e noutros locais, isto envia uma mensagem preocupante de que mesmo os projetos climáticos previamente financiados são tão estáveis como o sistema político que os apoia.
Enquanto as câmaras do Congresso estão vazias em Washington, a questão mantém-se: como pode um país descarbonizar-se quando o seu governo não consegue manter-se aberto?