Casos de agressões, grupos neaonazis e discurso de ódio passou a ser o novo normal em Portugal. O Conselho da Europa diz que há “razões para preocupação”.
No domingo, Carla Nunes Semedo fez a denúncia nas redes sociais. A filha, de 17 anos, tinha sido atacada por um condutor de autocarro.
“O condutor de autocarro achou por bem dizer-lhe que não transportava animais. Sim, em 2025. Em Portugal. Em Cascais”, escreveu no Instagram.
Carla Nunes Semedo, que é negra, não é uma cidadã anónima, é vereadora da Câmara de Cascais, uma vila na Área Metropolitana de Lisboa. O caso teve eco na imprensa e espoletou uma investigação por parte da companhia de autocarros.
Mas a vereadora, que é responsável pelos pelouros da Saúde, Assuntos Sociais e Direitos Humanos, não deixou de notar uma tendência: o aumento deste tipo de casos.
“Há um fenómeno ainda mais preocupante do que o aumento do discurso de ódio: é a sua normalização. A perda de vergonha. O à-vontadinha com que se profere o que durante anos esteve camuflado sob o véu do “politicamente correto”, escreveu.
Em Portugal, todos os dias há notícias de agressões, discurso de ódio ou de movimentos de extrema-direita.
Na terça-feira, dois dias depois desta denúncia, a Polícia Judiciária portuguesa deteve seis pessoas suspeitas de integrarem um grupo de extrema-direita apoiado por uma milícia armada. Segundo a polícia, eram “seguidores de um ideário antissistema e conspirativo, que incentivava à discriminação, ao ódio e à violência contra imigrantes e refugiados".
O país ainda se tinha recomposto dos ataques do 10 de junho. Neste feriado, o dia nacional, um elemento de um grupo alegadamente neonazi atacou um ator à porta de um teatro em Lisboa. Umas horas depois, no Porto, dois homens agrediram voluntárias que prestavam assistência a sem-abrigo por estarem a ajudar estrangeiros Os suspeitos terão feito a saudação nazi.
Mas as organizações de combate ao racismo denunciam que há muitos mais casos, sobretudo agressões a imigrantes, que nunca chegam a ser noticiadas.
Há razões para preocupação, diz o Conselho da Europa
Mas será que o discurso aumentou mesmo em Portugal ou é apenas uma perceção?
O Conselho da Europa diz que há de facto uma tendência de crescimento. A Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância (que faz parte do Conselho) fala em “razões para a preocupação” no relatório sobre Portugal, publicado de cinco em cinco anos.
“Houve um aumento acentuado do discurso de ódio em Portugal, direcionado principalmente a migrantes, pessoas ciganas, LGBTI e pessoas negras”, diz o Conselho da Europa.
O relatório fala de um aumento do discurso de ódio na Internet, do discurso inflamatório de alguns políticos e também de casos de violência a envolver grupos neonazis.
Também diz que não tem sido feito o suficiente para apoiar os desafios dos ciganos e que as iniciativas educacionais para este grupo são esporádicas e limitadas.
Os imigrantes “enfrentam a xenofobia no acesso à habitação”, alguns são “sem-abrigo ou vivem um casas sobrelotadas ou sem condições dignas” e estão particularmente vulneráveis devido a “atrasos nos processo de regularização”.
O documento ainda defende ser preciso fazer mais para combater estes crimes. Desde falhas na lei para uma melhor investigação, até casos de abusos racistas praticados pela própria polícia.
Mas também são referidos alguns progressos nos últimos cinco anos. Como a criação da Comissão para a Igualdade e Contra a Discriminação Racial, a adoção do Plano Nacional de Combate ao Racismo e à Discriminação ou a criminalização das terapias de conversão.
“Nós já não somos os mesmos”
Estes casos coincidem com o aumento da imigração em Portugal. O país tem cerca de 1,5 milhões de imigrantes. Um aumento acentuado desde 2017, quando havia pouco mais de 400 mil imigrantes. Nesse ano foi simplificada a regularização dos imigrantes através da manifestação de interesse.
Há também um aumento da extrema-direita. Nas últimas eleições legislativas, de 18 de maio, o partido Chega, de extrema-direita, passou a ser a segunda força política no parlamento, ultrapassando o histórico Partido Socialista. A hostilidade em relação à imigração e aos ciganos fazem parte das bandeiras do partido.
Mas muitas das vítimas, sobretudo nacionais portugueses, parecem estar também mais atentas e conscientes dos direitos.
Na publicação que nas redes sociais, em que denunciava a agressão da filha, Carla Nunes Semedo desabafava que, apesar de ser difícil falar sobre o caso “é mais duro calar” e avisa: ”nós já não somos os mesmos”.
“Não somos mais aqueles que, por respeito ou medo, engoliam em seco o ódio disfarçado de “opinião”. Não somos mais os que aceitavam ofensas em nome da paz social”, escreveu.