“A justiça internacional não é uma construção teórica” – Karim Khan

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“Estamos num momento muito crítico. Quando falamos sobre armas nucleares táticas, não é apenas uma zona de penumbra [Twilight Zone], é a véspera de um pesadelo. Precisamos de levar o assunto muito a sério. Acho que a lei tem um papel a desempenhar. Isto não é um filme de Hollywood.”

Estamos perante mais uma escalada violenta da guerra na Ucrânia, incluindo ataques contra alvos civis. Existem fortes apelos à justiça internacional, tanto para os crimes de guerra cometidos em território ucraniano como para a dissuasão.

O procurador-geral do Tribunal Penal Internacional (TPI) em Haia, Karim Khan, é o nosso convidado desta edição do Global Conversation.

Shona Murray, euronews: À luz dos acontecimentos dos últimos dias, do que vimos em Bucha, da decisão da Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos de investigar 30 cidades, onde encontraram provas de execuções e de violação, mesmo de crianças de quatro anos e de adultos nos seus oitenta, qual é o papel do TPI no julgamento destes crimes graves?

Karim Khan: O papel do procedimento penal é garantir que haja responsabilização, que não haja refúgio para a impunidade, que não exista uma crença crescente de que tudo pode acontecer, que os actos criminosos tenham consequências. Isso exige que estejamos presentes. Exige que investiguemos e apuremos a verdade e depois que tenhamos persistência para usar os trâmites do tribunal para apresentar casos aos juízes independentes para que estes sejam revistos, se determinarmos que foram cometidos crimes.

SM: A Ucrânia acusou algumas pessoas nos seus tribunais nacionais. Quando veremos os generais, soldados e militares responsáveis por esses crimes num tribunal?

Karim Khan: Bem, isso depende das provas. Mas certamente, como disse antes da minha eleição e de começar o meu mandato em junho do ano passado, temos a responsabilidade de mostrar que a justiça internacional não é uma construção teórica. Na verdade, é sentida pelas vítimas e aqueles que mais precisam da lei, os mais vulneráveis, as crianças, as mulheres e os homens que são civis, que estão a sofrer muito, certamente na Ucrânia , mas também em muitas outras partes do mundo. Ou seja, estou bastante ciente do facto de que a justiça internacional não pode ser vista como um exercício histórico de investigação de alegações passadas de interesse histórico.

SM: Prevê um tribunal aqui em Haia, em complemento ao sistema judicial nacional da Ucrânia? É assim que vai ser? Esse é o apelo que está a ser feito neste momento, algo como o que vimos na Jugoslávia, Ruanda, entre outros.

Karim Khan: O princípio da complementaridade é certamente um princípio fundamental. Nesse sentido, tivemos uma cooperação muito boa com as autoridades da Ucrânia. Estamos a trabalhar de perto com elas. Estamos a conduzir as nossas investigações de forma independente porque, é claro, temos uma certa arquitetura legal que a Ucrânia não tem. Temos provisões para genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade. Temos a capacidade de acusar não apenas os autores diretos, as pessoas acusadas de violar, matar ou bombardear, mas também os seus superiores, militares ou políticos. Esse é um instrumento legal que temos ao abrigo do Estatuto de Roma, e vamos usá-lo se as provas assim o exigirem.

A justiça internacional não pode ser vista como um exercício histórico de investigação de alegações passadas de interesse histórico.
Karim Khan

SM: Referiu nas Nações Unidas que isto são, potencialmente, ecos de Nuremberga. Pensa que Vladimir Putin, o presidente da Rússia, por exemplo, pode acabar no tribunal de crimes de guerra aqui em Haia?

Karim Khan: Bem, Nuremberga tornou claro que nem as ordens de superiores, nem o cargo oficial de um indivíduo como general, como presidente ou como primeiro-ministro, constituem uma defesa, um argumento para a imunidade. O Tribunal Penal Internacional, como tribunal internacional reconhecido pelo Conselho de Segurança, utilizado pelo Conselho de Segurança no Sudão, na Líbia, e noutros casos, tem competência para lidar com qualquer indivíduo que tenha cometido crimes ou tenha impedido ou deixado de punir crimes sob a nossa jurisdição.

SM: Isso também significaria a sua imunidade no caso de qualquer acordo de paz ou solução negociada entre a Ucrânia e a Rússia.

Karim Khan: Bem, não existe imunidade para crimes internacionais. Para além disso, como sabe, um dos princípios de Nuremberga é que não há prescrição para crimes de guerra ou crimes contra a humanidade, crimes que são Hostis humani generis, que violam os princípios básicos da nossa humanidade. Não pode haver um porto seguro para esses crimes e a lei tem um papel a desempenhar, nós faremos a nossa parte.

No momento em quando falamos sobre armas nucleares táticas, não é apenas uma zona de penumbra [Twilight Zone], é a véspera de um pesadelo. Precisamos de levar o assunto muito a sério. Acho que a lei tem um papel a desempenhar. Isto não é um filme de Hollywood.
Karim Khan

SM: Com base nas provas do Tribunal Penal Internacional, naquilo que viu pessoalmente, bem como na retórica da Rússia, de generais russos e outros, a que estamos a ouvir, muitos especialistas jurídicos afirmam que se trata de uma ideologia genocida. Isto é algo que sente que poderá ser investigado?

Karim Khan: Estamos num momento muito crítico, um momento em que os líderes falam sobre usar violência, usar bombas, usar armas. É uma questão de parar e pensar para onde nos dirigimos. No momento em quando falamos sobre armas nucleares táticas, não é apenas uma zona cinzenta, é a véspera de um pesadelo. Precisamos de levar o assunto muito a sério. Acho que a lei tem um papel a desempenhar. Isto não é um filme de Hollywood. Isto não é uma espécie de drama. Isto é algo muito próximo e pessoal para muitos. Para os ucranianos que estão agora espalhados pela Europa, que estão fora das suas casas, que estão separados dos seus entes queridos. Para aqueles, como membros da minha equipa que estão em Kiev, que estão abrigados no subsolo e se perguntam quando serão atingidos pelo próximo míssil. Estes civis merecem toda a proteção.

SM: Nesse caso, qual é o processo se houver evidência de violação da Convenção de Genebra por indivíduos específicos? Existe um procedimento para que essas pessoas possam ser presas em território russo ou em território ucraniano?

Karim Khan: Não vou entrar em nenhum cenário específico mas certamente é bem conhecido - e vimos isso na ex-Jugoslávia, em Ruanda, no Tribunal Penal Internacional - que se eu determinar após investigações que há motivos para acreditar que um indivíduo cometeu crimes, posso requerer um mandado. Os juízes determinarão se esses motivos são ou não suficientes, e depois segue-se uma fase de avaliação das possibilidades de opção de captura. Ou então as pessoas entregam-se voluntariamente. Tivemos chefes de estado que se renderam voluntariamente perante este tribunal.

SM: Para terminar, relativamente ao bombardeamento da ponte de Kerch na Crimeia, como jurista pensa que este é um alvo militar legítimo, dado que estamos no meio de uma guerra e este é um território ocupado?

Karim Khan: Não vou comentar sobre isso porque na verdade nem sequer sei o que aconteceu. Li relatos, que são informação pública, sobre uma série de cenários, desde o de acidente ao de sabotagem e a uma variedade de questões.

Mas, em termos de o que esse ataque pode constituir - sei que seria aliciante opinar neste programa sobre se essa instância pode ou não ser um crime ou pode ou não ser um alvo legítimo - uma coisa é clara: não se pode atingir deliberadamente, intencionalmente, alvos civis, escolas e hospitais, locais de residência de civis, a menos que estes estejam a ser utilizados para obter uma vantagem militar precisa e, mesmo assim, há uma regra de proporcionalidade. Isto é aplicável e, claro, pode ser extrapolado para uma variedade de outros alvos, sejam pontes ou locais de energia. Mas espalhar o terror não é permitido.

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