A retórica agressiva do presidente norte-americano, Donald Trump, em relação ao Canal do Panamá chocou os panamianos, que vêem a via navegável como uma fonte de orgulho nacional.
Quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ameaçou "recuperar" o Canal do Panamá no discurso de tomada de posse, na semana passada, os panamianos recordaram o imperialismo norte-americano de outrora.
Durante a maior parte do século XX, o Panamá foi fisicamente dividido em dois pela Zona do Canal, controlada pelos Estados Unidos, que atravessava o centro do país centro-americano.
Graças à diplomacia panamiana, ao movimento internacional de descolonização e à diminuição do interesse norte-americano, em 1977 os Estados Unidos, sob o comando do falecido presidente Jimmy Carter, concordaram em ceder totalmente o canal ao Panamá até ao final do século.
Sob o controlo panamiano, a via navegável foi alargada e a eficácia melhorada. O canal movimenta cerca de 5% do comércio marítimo mundial e os Estados Unidos são, de longe, o seu maior utilizador.
Numa mensagem claramente destinada a apelar à base eleitoral de direita, Trump ameaçou reafirmar a supremacia sobre o canal, que foi construído pelos EUA entre 1903 e 1914. Também prometeu apoderar-se da Gronelândia, um território autónomo dinamarquês.
"Os EUA vão reclamar o lugar de direito como a maior, mais poderosa e mais respeitada nação do mundo, inspirando o temor e a admiração de todo o mundo", afirmou no discurso de tomada de posse, na passada segunda-feira, como prefácio das declarações sobre o Canal do Panamá.
O atual presidente dos Estados Unidos descreveu a decisão de Carter de entregar o canal como um "presente insensato", antes de afirmar falsamente que o Panamá quebrou a promessa de manter neutra a importante travessia comercial.
"A China está a explorar o Canal do Panamá. E nós não o demos à China. Demos o Canal ao Panamá e estamos a recuperá-lo", disse Trump, numa alegação contra Pequim que os especialistas consideram infundada.
O presidente do Panamá, José Raúl Mulino, reiterou que o Canal do Panamá é apenas do seu país: "É impossível, não posso negociar", disse na quinta-feira, pouco antes da visita do novo secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, ao país. "O canal pertence ao Panamá".
"Parte de quem somos"
A retórica agressiva de Trump chocou os panamianos, cujas mentes foram levadas de volta aos anos em que a presença dos EUA pairava sobre o país.
Marixa Lasso, uma historiadora panamiana e autora de Erased: The Untold Story of the Panama Canal, cresceu a atravessar a Zona do Canal para ir de casa até à praia.
Parecia um "país diferente" no meio do seu próprio país, disse à Euronews: "A Zona do Canal era um enclave colonial no meio do Panamá, perto da Cidade do Panamá e de Colón. Era um espaço que os panamianos podiam atravessar, mas, a não ser que fossem convidados, não podiam aceder à maioria dos locais ou a qualquer uma das suas atrações."
"Tinha uma força policial norte-americana e era regida pela lei americana. Por isso, parecia um país diferente, mesmo ali, entre as duas cidades mais importantes do Panamá. O que, naturalmente, deu origem a tensões".
A frustração com o controlo da Zona do Canal por parte dos EUA levou a protestos em grande escala em 1964. Durante os distúrbios, morreram dezenas de pessoas, a maioria das quais eram estudantes panamianos.
Ao refletir sobre o significado do canal para os panamianos, Lasso fala da alegria do país em recuperar uma parte integrante da sua identidade, uma rota comercial cujas origens remontam ao século XVI.
"Faz parte de quem somos esta ligação estratégica a dois oceanos. No século XX, isso foi-nos retirado. E há um enorme orgulho em tê-lo recuperado, usando negociações, relações internacionais e protestos para fazer desaparecer esse enclave colonial e recuperar a rota de trânsito", diz Lasso.
Distorção da história
A historiadora da Universidade de Maryland Julie Greene, que também escreveu sobre o canal, diz que é importante lembrar como os EUA adquiriram o território no qual construíram a hidrovia.
Com o apoio norte-americano, o Panamá conquistou a independência da Colômbia em 1903. Percebendo uma oportunidade, os EUA rapidamente negociaram com o proprietário de uma empresa francesa que anteriormente tinha fracassado desastrosamente ao tentar construir um canal.
O Tratado de Hay-Bunau-Varilla que resultou dessas negociações deu aos EUA uma parte de 50 milhas por 10 milhas do Panamá, que dividia o país ao meio.
Como referiu Greene, o New York Times descreveu o tratado na altura como uma "desgraça nacional", afirmando que seria "uma política de intriga e agressão desonrosa" construir uma via navegável através do istmo, mesmo que isso beneficiasse economicamente o país ao permitir que os navios norte-americanos evitassem a longa e perigosa viagem à volta da ponta da América do Sul.
Este retrato negativo depressa deu lugar a uma visão mais positiva do canal, inspirada por Theodore Roosevelt. Em 1906, Roosevelt tornou-se o primeiro presidente dos Estados Unidos a sair do país quando se deslocou ao Panamá para examinar a obra.
"Fez uma campanha publicitária brilhante. Visitou todas as partes da obra, seguido por um exército de jornalistas. Criou o que eu considero ser uma mitologia sobre o canal: que era um exemplo brilhante dos conhecimentos científicos, tecnológicos e médicos dos EUA. E que era uma dádiva altruísta à civilização mundial", diz Greene.
A versão de Roosevelt apagou a exploração dos trabalhadores, em grande parte provenientes das Índias Ocidentais, e o importante papel que o Panamá desempenhou no projeto. Como explica Lasso, as 41 cidades panamianas da Zona do Canal, que foram despovoadas por ordem do então presidente dos EUA William Howard Taft, em 1912, também foram esquecidas.
Tanto Lasso como Greene notam a distorção da história e a utilização incorreta de números por parte de Trump durante o discurso de tomada de posse.
O presidente dos EUA afirmou que 38.000 vidas tinham sido perdidas durante a construção do canal: "Cerca de 5.000 pessoas morreram na construção do canal, das quais 350 eram americanas e 4.049 eram trabalhadores das Índias Ocidentais, de acordo com os registos oficiais dos EUA", diz Lasso. "Além disso, não podemos ignorar o quanto o Panamá se sacrificou pelo canal, ao perder todas as terras e cidades construídas na rota."
Greene, autora de Box 25: Archival Secrets, Caribbean Workers, and the Panama Canal (Caixa 25: segredos de arquivo, trabalhadores das Caraíbas e o Canal do Panamá), explica como o projeto do canal era perigoso para os trabalhadores não-americanos, que eram obrigados a viver separados dos seus colegas norte-americanos.
"Os trabalhadores das Caraíbas estavam mais expostos a doenças, mais expostos a acidentes ferroviários, mais expostos a explosões prematuras de dinamite. Nos seus testemunhos, falam, por exemplo, de como 'a carne dos homens voava no ar como pássaros nesse dia'", diz. "As suas vidas eram extremamente duras".
A historiadora acrescenta que os comentários de Trump sobre o Panamá se baseiam no discurso iniciado por Roosevelt.
"Ao longo dos anos, esta mitologia sustentou que o canal foi um gesto 'magnânimo', como Trump lhe chamou, uma dádiva altruísta à civilização mundial. Na realidade, foi o imperialismo que colocou a República do Panamá numa relação subserviente, quase neocolonial, com os Estados Unidos durante quase um século".
Relações regionais em risco
De acordo com Christopher Sabatini, membro sénior da Chatham House, um think tank sobre assuntos internacionais com sede em Londres, as palavras de Trump podem fazer recuar o relógio das relações entre os EUA e a América Latina.
Tal como a sua ameaça de impor tarifas elevadas à Colômbia, na semana passada, devido à sua recusa inicial em aceitar dois aviões de migrantes, os comentários de Trump sobre o Panamá são uma forma de "reafirmar a primazia dos EUA de uma forma que Trump sente que é devida em todos os assuntos, grandes e pequenos", disse Sabatini.
Sabatini acredita que Trump não planeia tomar conta do canal, mas quer pressionar as autoridades do Panamá a reduzir os custos para os navios de carga e navios da marinha dos EUA ao longo da rota. "Ele acha que é um direito, já que os EUA o construíram.
O presidente dos EUA também espera que as suas ameaças possam levar o Panamá a revogar as licenças detidas pela CK Hutchison Holdings, um conglomerado com sede em Hong Kong que gere dois portos perto do canal, diz Sabatini.
Sabatini não acredita nas alegações de ameaça da China, mesmo que Pequim consiga convencer a empresa a partilhar informações.
"Na pior das hipóteses, eles forneceriam informações, informações que provavelmente estariam disponíveis através de outras fontes", disse ele. "Trump está a utilizar o espetro da influência chinesa para tentar aumentar a urgência das suas exigências."
Em última análise, Sabatini acredita que Trump vai conseguir o que quer. No entanto, isto não vai acontecer sem consequências negativas.
"Sim, acho que ele vai conseguir o que quer. O Panamá não tem escolha, muito francamente. Mas não sabemos quais serão os danos colaterais a longo prazo desta ação de pressão no peito", diz.
"A ameaça de tomar o Canal do Panamá vai continuar a pairar como uma sombra não só sobre o Panamá, mas sobre todos os acordos que outrora se pensava estarem resolvidos na América Latina."
Se os Estados Unidos estão dispostos a ameaçar o Panamá, um dos seus aliados mais próximos na região, os outros países vão começar a preocupar-se se Washington é de confiança. "Isso vai fazer com que eles se perguntem se a santidade dos contratos passados - tratados, acordos de livre comércio ou territoriais - valem o papel em que estão impressos", diz Sabatini.
Numa região onde a China tem vindo a acumular influência nos últimos anos e onde Trump precisa de aliados para travar o fluxo de imigrantes para os EUA, talvez não seja sensato visar países como o Panamá, diz Sabatini.
Para Trinidad Ayola, cujo marido, um tenente da força aérea panamiana, foi morto durante a invasão norte-americana do Panamá em 1989, as ameaças de Trump são uma recordação de um passado doloroso: "Quando Trump fez comentários sobre a tomada do canal com as mentiras de que está a ser gerido pelos chineses, lembrei-me do que vivemos em 1989, antes da invasão dos EUA", diz à Euronews.
Sob as ordens de George H. W. Bush, Washington lançou uma ação militar a 20 de dezembro de 1989 para depor o ditador do Panamá, o general Manuel Noriega. Centenas de soldados e civis panamianos foram mortos em resultado dessa ação.
Ao fazer uma retrospetiva de todas as ações dos EUA no país, Ayola, que dirige uma associação que representa as famílias das vítimas da invasão de 1989, diz que o Panamá não deve ceder às ameaças de Trump: "Para nós, o canal é o símbolo da nossa soberania que nos custou lágrimas e sangue", diz.