Kayed Hammad fugiu de Gaza após quase dois anos de guerra. Perdeu o seu filho mais velho nos bombardeamentos e não consegue apagar da sua mente o horror que viveu.
Durante anos, Kayed Hammad seguiu os passos de jornalistas internacionais que faziam reportagens a partir da Faixa de Gaza. Como tradutor, acompanhava-os para lhes contar o que se passava no local.
Duas semanas depois de ter conseguido sair vivo de Gaza com a sua família, Kayed Hammad conta à Euronews a sua história, na paz e tranquilidade de que goza agora em Espanha. É uma das poucas histórias que consegue romper o muro de silêncio que rodeia a Faixa de Gaza.
"Brincar às escondidas com a morte"
Durante os quase dois anos em que a guerra se intensificou, a sua vida tem sido uma fuga constante. Teve de mudar de casa dezassete vezes para evitar os bombardeamentos.
"Tive de mudar de casa 17 vezes durante esta guerra, para fugir à morte. A brincar às escondidas com a morte", resume. Uma fuga constante, motivada pelo som dos drones, a explosão das bombas e o medo constante de ser o próximo.
"Temos passado muita fome. Tivemos de comer alimentos para animais. Pessoalmente, tenho comido farinha de cevada e de milho, mas da pior qualidade que dão aos animais". Entretanto, viu como até os animais morriam de fome porque não havia mais nada para ninguém.
A dor pessoal está presente em cada palavra. Kayed perdeu o seu filho mais velho num bombardeamento. "Deixei o meu coração lá, quando o enterrámos", diz ele, ainda sem conseguir aceitar a perda. O impacto emocional e físico foi brutal: sofreu um ataque cardíaco durante os cercos, sem possibilidade de assistência médica.
Ainda sofre com as sequelas. E há cenas que nunca esquecerá: os corpos carbonizados, o cheiro dos cadáveres em decomposição na rua, inacessíveis durante semanas por causa dos atiradores furtivos. "É preciso ver todos os dias e sentir este cheiro". Kayed conta a experiência de ver cadáveres inchados durante meses nas ruas, sem ninguém para os recolher, devido à presença de atiradores furtivos. "Quando conseguimos chegar até ele, eram ossos dentro das roupas", observa.
"Cada um à espera da sua hora de morrer"
Sair de Gaza é muito complicado. "Fazíamos praticamente parte de um cartel a céu aberto", recorda Kayed. A partida foi possível graças a uma carta assinada por mais de 70 jornalistas e figuras públicas, enviada ao Ministério dos Negócios Estrangeiros para pedir uma coordenação que permitisse a sua retirada. Entre os que solicitaram o regresso de Kayed encontra-se o antigo chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell.
"Estávamos no corredor da morte", recorda o tradutor. "Todos estavam à espera da sua hora de morrer. E, de repente, em poucas horas, estávamos cá fora. Considerámos isso uma dádiva de uma nova vida".
Apesar desta ajuda, Kayed não esconde a sua desilusão e aponta com firmeza o esquecimento de muitos governos europeus em relação às pessoas presas em Gaza. Apenas elogia a posição de Espanha e da Irlanda.
"São apenas dois governos que estão ao lado do povo do seu país, apoiando a causa palestiniana e a causa do mundo árabe. As pessoas abriram os olhos e sabem o que está a acontecer na Palestina. Mas os governos fazem o que querem, de acordo com determinados interesses".
A sua desilusão aumenta quando cerca de cem pessoas são mortas todos os dias. Segundo as autoridades sanitárias de Gaza, controladas pelo Hamas, o número de mortos é superior a 58.000. "É como se nada tivesse acontecido, são números diários e penso que toda a gente se está a habituar a este número de mortos", sublinha Kayed.
"Sinto-me com sorte porque há famílias que foram apagadas dos registos"
Desde a sua chegada a Espanha, Kayed tem tentado reconstruir uma rotina que lhe permita ultrapassar o trauma sem esquecer o que viveu. Agora está preocupado em encontrar um lugar para viver, já que vive com o irmão numa cidade da província de Málaga. Mas não esquece os que ainda estão presos debaixo das bombas. Quando fala da sua terra natal, a sua voz quebra: "Deixei dois milhões de pessoas para trás. Amigos, familiares, vizinhos. Ainda lá estão todos, à espera da sua hora".
Agora, seguro em Espanha, Kayed vê os seus filhos a brincar, a descobrir o silêncio sem bombas, a olhar para a lua sem medo. Não esquecem, mas pelo menos dormem. Estão em paz. "Bem, eu perdi um filho, mas é melhor dizer que tenho sorte em comparação com os outros, com as outras famílias. Há famílias que foram apagadas dos registos. Esta guerra não é uma guerra, é um genocídio acompanhado de pura vingança".