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Depressão Cláudia expõe urbanismo mal planeado. Especialistas alertam para fenómenos mais extremos

A destruição causada por um sistema climático severo num parque de campismo em Albufeira, na região do Algarve, sul de Portugal, sábado, 15 de novembro de 2025.
A destruição causada por um sistema climático severo num parque de campismo em Albufeira, na região do Algarve, sul de Portugal, sábado, 15 de novembro de 2025. Direitos de autor  Joao Matos/Copyright 2025 The AP. All rights reserved
Direitos de autor Joao Matos/Copyright 2025 The AP. All rights reserved
De Ema Gil Pires & Joana Mourão Carvalho
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Especialistas contactados pela Euronews concordam que tornados são impossíveis de prever, mas alertam que eventos extremos serão mais frequentes e que cheias e inundações mostram riscos de um urbanismo mal planeado.

Cheias, quedas de árvores e destruição generalizada. Foram estas algumas das principais consequências da passagem da depressão Cláudia que, até domingo, segundo o balanço feito pela Proteção Civil, originou 4.017 ocorrências desde quarta-feira e resultou na morte de três pessoas.

Segundo a autoridade, as regiões de Setúbal, Porto e Algarve foram as mais impactadas pelo agravamento do estado do tempo, marcado por episódios de precipitação e ventos extremos.

Na cidade algarvia de Albufeira, registou-se um tornado, na manhã de sábado, que vitimou uma mulher de 85 anos, de nacionalidade britânica, e causou danos significativos num hotel e num parque de campismo, imagens que circularam um pouco por toda a Europa.

Mas os impactos da depressão Cláudia não foram sentidos apenas em território português. Também em Espanha, Irlanda, Inglaterra e no País de Gales foram visíveis os efeitos da sua passagem, tendo sido registadas cheias em diferentes localidades.

Isto, depois de, ao longo dos últimos anos, terem sido cada vez mais noticiadas as consequências de fenómenos meteorológicos extremos. Exemplo disso foi a DANA (Depressão Isolada a Níveis Altos) que assolou Espanha, e em particular a região de Valência, em outubro do ano passado, que resultou em mais de 200 mortes. Um ano depois, a ilha espanhola de Ibiza também registou inundações severas, enquanto a França sentiu o impacto da passagem da tempestade Benjamin.

Será que estes fenómenos estão, de facto, a tornar-se cada vez mais frequentes? Com que precisão é possível prever, ou não, a ocorrência de tornados? Está o país preparado para lidar, no futuro, com situações semelhantes?

O que aconteceu no sábado em Albufeira?

Em declarações à Euronews, Paulo Pinto, meteorologista do IPMA (Instituto Português do Mar e da Atmosfera), explica que, na referida cidade algarvia, se identificou "um tornado originado a partir de uma supercélula" ou, por outras palavras, "de um mesociclone".

Ou seja, na base deste fenómeno terá estado, de forma simplificada, uma "nuvem de trovoada que, devido a certas circunstâncias, adquiriu circulações organizadas [de ar] no seu interior".

Para que o mesmo se forme, detalha Paulo Pinto, é necessário que o "vento horizontal" que se regista na "baixa atmosfera", isto é, nos "primeiros dois ou três mil metros" de altitude, e aquele que se regista bem mais acima, ao nível dos "seis mil metros", apresentem diferentes características de direção e velocidade (wind shear).

São essas diferenças que acabam por resultar na formação de um tornado, vulgarmente identificável como um "vórtice que exibe o ar a rodar, segundo um eixo aproximadamente vertical e a ascender do solo para a base da nuvem-mãe".

Também em declarações à Euronews, o climatologista Carlos da Camara acrescenta que os fenómenos climáticos extremos que se registaram em Portugal ao longo dos últimos dias foram resultado de uma "depressão fria", diferentes das apelidadas de "depressões frontais" que se caracterizam pela interação contrastante "entre duas massas de ar, uma fria e seca, a outra quente e húmida", que dão origem a "instabilidades que levam à produção de chuva, vento, etc."

Tais depressões frontais destacam-se pela sua "mobilidade", deslocando-se normalmente "de oeste para este" e demorando "algumas horas a passar sobre o território". De forma bem diferente, nas depressões frias, como esta última que se fez sentir em Portugal, "os ventos fazem quase um círculo a rodar no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio e, portanto, temos uma espécie de núcleo de baixas pressões no centro e, depois, elas vão aumentando para a periferia".

Destruição no parque de campismo de Albufeira após a passagem de um tornado
Destruição no parque de campismo de Albufeira após a passagem de um tornado Joao Matos/Copyright 2025 The AP. All rights reserved

Estes fenómenos são mais recorrentes atualmente do que no passado?

O climatologista do Instituto Dom Luiz (IDL), da Universidade de Lisboa, destaca que este fenómeno não é "inaudito" em território português. "As depressões frias ocorrem com frequência em Portugal e, muitas vezes, são responsáveis por inundações, etc.", detalha.

Aliás, "uma 'prima' dessas depressões, não exatamente igual, mas muito próxima, foi aquilo que aconteceu em Valência o ano passado", descreve Carlos da Câmara, numa referência à DANA.

Em termos estatísticos, acrescenta ainda o docente, e sabendo que "as alterações climáticas têm que ver com a emissão de gases com efeito de estufa", isso leva, primeiro que tudo, "a que na atmosfera se armazene mais energia".

Desta forma, há "mais energia disponível para se converter em movimento" ou, por outras palavras, "para alimentar ventos fortes", com essas ocorrências tornando-se, assim, mais prováveis.

Por outro lado, diz ainda Carlos da Camara, "as alterações climáticas estão a levar a que haja um contraste mais baixo entre o norte frio, o norte polar, e o sul equatorial quente". Assim, "se tenho as regiões polares a aquecer mais rapidamente do que as regiões equatoriais, a diferença entre o quente, a sul, e o frio, a norte, diminui".

Consequentemente, refere o docente, se esse contraste se reduz, há uma "maior possibilidade de haver ondulações, para o norte e para o sul, na atmosfera [...], que provoquem estas depressões frias".

Perante estes dados, conclui, "é expectável" que este tipo de fenómenos comece a ser cada vez mais recorrente.

No caso concreto dos tornados, e sobre se se registam "hoje em dia mais do que há 40 anos atrás", Carlos da Camara considera que esta é uma questão "difícil" de responder, já que, atualmente, "um tornado é sempre registado por alguém com um telemóvel", sendo difícil de passar despercebido, ao contrário do que poderia acontecer no passado.

Qual a capacidade de previsão de tornados?

Segundo o especialista do IPMA contactado pela Euronews, apesar de todos os "radares, observação com satélite, estações de superfície e modelos numéricos" atualmente existentes, e "fruto das condições práticas e tecnológicas" de que dispõem as autoridades responsáveis pela previsão meteorológica, existe ainda uma "observação insuficiente" ao nível de uma camada na baixa troposfera (0-1 km).

Por esse mesmo motivo, explica Paulo Pinto, apesar de ser possível indicar, "com vários dias de antecedência", que "uma tempestade ou depressão" vai impactar o território nacional, o mesmo não se aplica à ocorrência de tornados.

Até porque, "com o radar meteorológico" os especialistas não conseguem "observar os tornados".

"O que o radar meteorológico observa é a estrutura convectiva e o mesociclone", permitindo, depois, aos previsores avaliar se esta tem maior ou menor potencial para gerar um tornado. Ainda assim, diz Paulo Pinto, "essa avaliação não é, normalmente, conclusiva por não se conhecer exatamente toda a física inerente à geração do fenómeno", não sendo, portanto, possível indicar com precisão o local e a hora em que um evento desta natureza pode ocorrer.

Cabe também às autoridades competentes, nomeadamente à Proteção Civil, atuar em conformidade com os avisos meteorológicos emitidos pelo IPMA, "como é prática corrente", assegura Paulo Pinto, ressalvando, no entanto, que "a verdade é que não há avisos de tornado."

"Em dias, - e são bastantes, mais do que as pessoas pensam - , em que existe a probabilidade de ocorrência de fenómenos extremos [...], a nossa interação com a Proteção Civil é no sentido, sempre, de a informarmos o melhor possível." No entanto, sobre o modo como a referida autoridade comunica este tipo de questões, indica que "não é fácil comunicar situações de risco associáveis a fenómenos de baixa probabilidade e que não são previsíveis, no sentido clássico do termo".

Carlos da Camara, docente da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, especialista em climatologia, sustenta a tese de que "um tornado é impossível de prever", sendo apenas possível dizer que, em certas ocasiões, podem existir "condições muito favoráveis à ocorrência de tornados".

E explica o seu raciocínio: "Uma regra simples que todo o meteorologista sabe [...], e que é justificável do ponto de vista das leis da física, é que quanto mais pequena é a escala do fenómeno, menor previsibilidade este tem." Um tornado, salienta, é um fenómeno "extremamente local" e, por isso, muito mais difícil de antecipar.

Especialistas concordam que eventos extremos com episódios de precipitação e ventos fortes serão mais frequentes.
Especialistas concordam que eventos extremos com episódios de precipitação e ventos fortes serão mais frequentes. Armando Franca/Copyright 2025 The AP. All rights reserved

Sobre os avisos emitidos pelo IPMA a propósito da chegada da depressão Cláudia ao território português, o docente considerou que foram emitidos "todos os alertas convenientes", com elevada precisão, de modo a sensibilizar a população para o que aí vinha. Tendo recordado que também a própria Proteção Civil emitiu avisos às populações, fornecendo-lhes recomendações e cuidados a ter durante esse período, os quais foram veiculados por vários meios de comunicação social.

A Euronews questionou ainda a Proteção Civil, de modo a tentar obter mais esclarecimentos sobre as medidas preventivas adotadas durante o fenómeno, e a sua política de avisos à população, mas não obteve resposta até à data de publicação deste artigo.

Adélia Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Geógrafos, também partilha da mesma ideia de que os tornados "são fenómenos muito localizados e difíceis de supervisão". "Portanto, a prevenção é estrutural e não especificamente voltada para este tipo de fenómeno", salienta em declarações à Euronews.

Segundo a geógrafa, estes eventos que conjugam vários elementos meteorológicos em simultâneo, como a precipitação muito intensa e os ventos muito fortes, têm que ser vistos a "uma escala muito micro, muito reduzida, porque são raros e têm que ter condições locais específicas para se formarem".

"Obviamente que pode haver avisos meteorológicos, mas são muito mais gerais do que à escala local. Isto não concerna tornados nem até mesmo rajadas de vento muito fortes", concretiza a diretora do Departamento de Geografia e Turismo da Universidade de Coimbra.

Falhas ao nível do "sentido cívico" e "cultura de risco"

Apesar de tudo isso, Carlos da Camara afirma que nem tudo correu bem, com um dos principais problemas a estar relacionado com o "sentido cívico" dos cidadãos.

Perante a existência de "avisos de tempestade e de ondulação" extremos, prossegue, vários têm sido os casos de pessoas que desrespeitam as recomendações das autoridades. "Imediatamente vão para as falésias tirar fotografias e não percebem o perigo em que estão a incorrer", exemplifica o docente.

Algo semelhante acontece, nomeadamente, no verão. Os portugueses, considera o professor, deveriam ter o cuidado de "olhar para as cartas meteorológicas ou para os avisos [existentes], para saber se é prudente ir acampar", mediante a existência, ou não, de risco de incêndio rural. "Não é só em caso de sismo" que as populações devem ter cuidados acrescidos, remata o climatologista.

Perante esta realidade, Carlos da Camara acredita que existe um grave problema de "falta de informação" e de "impreparação ao nível da cidadania". O qual deveria ser acautelado desde tenra idade, especialmente nas escolas e no setor educativo, mas também através de campanhas de sensibilização para estes riscos.

Adélia Nunes fala mesmo num problema de literacia [climática], identificando que há uma "falta de cultura do risco".

"Acho que temos uma memória muito curta relativamente àquilo que são os riscos, ou seja, esquecemos muito rapidamente manifestações anteriores de risco. E, portanto, tem que haver, em termos políticos, uma necessidade de apostar na prevenção do risco e isso passa muito pela literacia para o risco", defende a geógrafa.

Segundo a especialista, isto é válido para qualquer tipo de risco, seja de inundação ou de incêndio, por exemplo. Portanto, "é transversal: as pessoas não sabem como reagir em situações de risco, porque, de facto, na nossa sociedade não há uma verdadeira cultura do risco, em que cada um é o primeiro agente de proteção pessoal", acrescenta.

Construção sem olhar ao risco de inundação

Carlos da Camara refere também que existe "um outro aspeto" que não pode ser descurado, e onde também "tem de haver muito mais progresso", no que toca às "infraestruturas e prevenção".

Citando os episódios de inundações que têm sido cada vez mais recorrentes em Portugal, o professor da Universidade de Lisboa nota que continuam a registar-se cheias "por deficiências na limpeza", mas também pela inexistência de "melhores esgotos", entre outras lacunas. Pelo que, na sua ótica, seria necessária uma maior aposta na prevenção.

Portugal apresenta 63 áreas de risco potencialmente significativo de inundações, podendo afetar mais de 100 mil habitantes em território continental, de acordo com a Agência Portuguesa do Ambiente (APA).

Mas Adélia Nunes considera que o potencial para aumentar o número de áreas em risco é grande, uma vez que são cada vez mais recorrentes os fenómenos extremos, mas também mais irregulares no tempo e no espaço.

"Aliado a estes fenómenos mais recorrentes, temos também construções cada vez mais dispersas em áreas de elevado risco de inundação. O crescimento urbano, com construção nos leitos de cheia e inundação, cria estas situações, e possivelmente o número de áreas que é suscetível a este tipo de risco de inundação tenderá a crescer no futuro, face a eventos meteorológicos cada vez mais extremos", sinaliza a geógrafa.

Sistema de drenagem interna das cidades não é capaz de escoar toda a água que circula à superfície
Sistema de drenagem interna das cidades não é capaz de escoar toda a água que circula à superfície Armando Franca/Copyright 2022 The AP. All rights reserved

A professora da Universidade de Coimbra assinala ainda o facto de se construir sem se ter em atenção as cartas de risco.

"A cartografia de risco é fundamental para delimitar as áreas para onde as áreas urbanas devem ou não crescer, e na realidade muitas vezes o poder político e as autarquias não estão preocupadas com essa questão, estão preocupadas em aumentar a sua malha urbana, a área de habitação ou de outras infraestruturas, sem ter em consideração estas áreas de risco", denuncia.

Para a docente, terá que ser o poder central a definir quais são as instituições que produzem essa cartografia e os instrumentos legais que permitam a operacionalização em termos territoriais.

"Temos que preparar o nosso território para estes eventos cada vez mais extremos. E isso só se consegue através de políticas efetivas em termos de ordenamento e gestão do território, que, de facto, não se têm coadunado com aquilo que são as mudanças que estão a ocorrer nestes fenómenos", defende.

Adélia Nunes frisa que todas as áreas urbanas que não tenham escoamento direto para uma linha de água correm o risco de serem inundadas, pois há impermeabilização do solo.

Isto acontece porque "o sistema de drenagem interna das cidades está subdimensionado, ou seja, não é capaz de escoar toda a água que circula à superfície, porque o solo está impermeabilizado e praticamente toda a água da precipitação escorre à superfície", explica.

A maioria dos municípios em risco localiza-se nas regiões do Tejo e do Oeste, mas também em torno dos rios Vouga, Mondego e Lis.

"Se nós temos construções e pessoas expostas, é natural que numa situação extrema os danos materiais e humanos venham a aumentar", lamenta a geógrafa, sublinhando que "as cidades, preferencialmente, terão que ter uma atenção redobrada neste contexto de fenómenos cada vez mais extremos, de chuvas cada vez mais intensas e concentradas e a crescente impermeabilização do solo que faz com que a água não se infiltre e circule à superfície".

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