Os filhos de quatro opositores detidos na Tunísia pediram ao Tribunal Penal Internacional (TPI) que abra uma investigação sobre a perseguição política e as violações dos direitos humanos alegadamente cometidas pelo governo do presidente Kais Saied.
Numa comunicação ao tribunal de Haia, os familiares acusam Saied e os membros do seu governo de violarem os direitos humanos em campanhas direcionadas contra líderes e partidos da oposição, tunisinos negros e migrantes, juízes, sindicatos, jornalistas e a sociedade civil.
"Os crimes que têm de ser investigados são dois", disse o advogado das famílias aos jornalistas, na quinta-feira, depois de ter apresentado formalmente a queixa: "Os crimes contra as pessoas que são escolhidas por serem opositores dos atuais governos e, em segundo lugar, os migrantes negros e os tunisinos negros que são alvo de uma onda de repressão brutal".
A queixa chama, ainda, a atenção da comunidade internacional para o aumento da repressão e a erosão da democracia na Tunísia desde a consolidação do poder por Saied, no golpe de 2021.
Pelo menos 41 dos críticos mais proeminentes do governo foram detidos numa repressão à dissidência, despertando receios de um regresso à autocracia no país do Norte de África, que já foi considerado a única democracia a emergir da primavera Árabe
A Tunísia tem sido criticada por cometer abusos contra os migrantes negros, muitos dos quais foram forçados a regressar a regiões desérticas na fronteira entre a Tunísia e a Líbia, sem comida nem água. Saied, em particular, foi condenado pelas suas declarações racistas, acusando os migrantes negros subsarianos de conspiração para "alterar a composição da paisagem demográfica da Tunísia".
"Autoritarismo brutal"
Os membros da família que apresentaram o processo são os filhos e filhas de Ghazi Chaouachi, fundador do partido Corrente Democrática; Chaima Issa, membro da coligação da oposição Frente de Salvação Nacional; e Said Ferjani e Rached Ghannouchi, dois proeminentes líderes do Ennahda, o partido democrático islâmico autodefinido.
"A liberdade não é dada, mas ganha-se com luta e firmeza", disse Elyes Chaouachi, filho de Ghazi Chaouachi.
Em declarações proferidas em Haia, os familiares afirmaram que os detidos foram têm estado sujeitos a condições horríveis.
Said Ferjani, 69 anos, já tinha sido torturado durante o regime do presidente Zine El Abidine Ben Ali, antes de fugir para Londres, onde viveu no exílio durante mais de duas décadas. Regressou ao país após a Revolução Tunisina, em 2011.
A sua filha, Kaouther Ferjani, disse à Euronews que o pai partilha uma cela com 120 pessoas, o dobro da capacidade, e que a maioria são fumadores inveterados.
"O meu pai está constantemente a entrar e a sair do hospital com infeções respiratórias. Nem sempre recebe tratamento médico e a forma como ele e os outros prisioneiros são tratados depende do capricho do guarda prisional", explicou Ferjani.
No início desta semana, três dos prisioneiros, incluindo o pai de Ferjani, anunciaram que iriam entrar em greve de fome em protesto contra o uso da detenção arbitrária.
"Estamos muito, muito preocupados com o bem-estar do meu pai, especialmente agora que ele começou a greve de fome, sabendo que ele não está bem, sabendo que agora tem um problema cardíaco e doenças", disse Ferjani.
Rached Ghannouchi, 82 anos, co-fundou o partido Ennahda e foi presidente do parlamento até Saied fechar a câmara, em 2021. Está em prisão preventiva pelo que a sua filha, Yusra Ghannouchi, descreveu como "acusações politicamente motivadas".
Em maio, foi também condenado a um ano de prisão pelo tribunal antiterrorismo da Tunísia, devido a comentários públicos que fez num funeral, onde elogiou o falecido como um "homem corajoso" que não temia "um governante ou tirano".
Em declarações à Euronews, Yusra Ghannouchi disse que a greve de fome é um "último recurso" para os defensores da democracia.
"Não conseguem obter qualquer justiça no atual sistema tunisino, que é controlado pelo presidente", explicou.
"Não existe independência do poder judicial na Tunísia. Há uma enorme pressão sobre os juízes para que se submetam às ordens do executivo e o poder judicial está a ser utilizado como uma ferramenta para eliminar a oposição. É por isso que estamos a procurar justiça", acrescentou.
A "aprovação tácita" da Europa
As duas mulheres já apresentaram um caso semelhante ao Tribunal Africano dos Direitos do Homem e dos Povos em Arusha, na Tanzânia, e apelaram à União Europeia, ao Reino Unido e aos Estados Unidos para que sancionassem o governo de Saied.
Mambros do Parlamento Europeu salientaram, igualmente, a ausência de condenação por parte do Ocidente às violações dos direitos humanos amplamente documentadas pelo regime.
"A Europa é responsável por não ter condenado o golpe de Estado, por ter dado a sua aprovação tácita ao que tem acontecido com Kais Saied. A Europa é responsável pela situação em que nos encontramos atualmente, em termos de repressão da oposição e do aumento das violações contra os refugiados", afirmou Yusra Ghannouchi.
"Por isso, precisamos que a Europa prove o seu compromisso com os valores da democracia, da liberdade e dos direitos humanos, em vez de recompensar quem está a violar profundamente os direitos humanos e a agravar a situação económica na Tunísia", acrescentou.
Elyes Chaouachi criticou o recente memorando de entendimento assinado entre a UE e o governo, com a presença em Tunis da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, e do primeiro-ministro neerlandês, Mark Rutte.
O memorando prevê, entre outras dotações financeiras, 105 milhões de euros em fundos da UE para reforçar os controlos fronteiriços e impedir a partida de navios de migrantes, a maioria dos quais chega às costas italianas.
"Mark Rutte continua a seguir o Presidente Saied para defender os seus interesses anti-migração, em vez de defender a democracia, a justiça e os direitos humanos", afirmou Chaouachi.
"Antes acreditava que os governos europeus estavam comprometidos com os direitos humanos, mas hoje um contrato anti-imigração ou um acordo com um presidente autoritário da Tunísia está a ser prioritário em relação à defesa dos direitos humanos e das condições dos prisioneiros", acrescentou.
Crimes "merecem" a atenção do TPI
A Tunísia foi primeiro Estado do Norte de África a tornar-se membro do Tribunal Penal Internacional, em 2011, quando as revoltas pró-democracia inspiraram a Revolução Tunisina.
O caso contra o atual governo foi apresentado ao abrigo do artigo 15.º do Estatuto de Roma do tribunal, que permite que o procurador investigue por "iniciativa própria", contornando a necessidade de obter um pedido de um Estado-membro ou do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
A jurisdição do tribunal limita-se a crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio, tal como definidos no estatuto.
O advogado da equipa reconheceu que seria "difícil" garantir que o TPI iniciasse a investigação. No entanto, as queixas apresentadas ao abrigo do artigo 15º já foram investigadas pelo Procurador no passado, nomeadamente no que se refere às violações dos direitos humanos em Myanmar (antiga Birmânia).
"Estamos a apelar ao procurador do TPI para que, pelo menos, visite a Tunísia, a fim de enviar um sinal muito claro de que estes graves crimes contra a humanidade, sobre os quais o tribunal tem jurisdição, não devem ser tolerados", disse o advogado.
"Deveria ser uma prioridade para o procurador do TPI voltar a sua atenção para esta questão. Se o ignorarmos, isso apenas encorajará o regime a continuar as suas violações", concluiu.