A Euronews falou com Emily O’Reilly, que vai agora deixar o cargo de provedora de Justiça Europeia, que ocupa desde 2013.
A Comissão Europeia precisa de ser mais responsabilizada, mais transparente sobre quais os poderes que a influenciam e estar aberta a ouvir todas as partes interessadas. Estes foram pontos-chave abordados pela provedora de Justiça Europeia, Emily O’Reilly, no Global Conversation.
Nesta entrevista, O´Really abordou ainda a limitação de poderes de órgão de alguns órgãos da União Europeia. Voltou também a mostrar preocupação com o acordo de migração assinado com a Tunísia, num contexto de maior influência da extrema-direita na Europa.
Emily O'Reilly, muito obrigada por aceitar o nosso convite para este programa. Depois de cerca de uma década, vai em breve deixar o cargo de provedora de Justiça Europeia, que monitoriza o nível de transparência das instituições da União Europeia. Mas ainda há muito trabalho a fazer. Ainda na semana passada, abriu um novo inquérito à decisão da Comissão Europeia de, de certa forma, aligeirar algumas regras da Política Agrícola Comum, uma política que paga muito dinheiro aos agricultores, que fizeram grandes protestos durante este ano. Neste caso, que explicações espera de Ursula von der Leyen? Penso que pediu uma reunião...
Emily O'Reilly: Sim, vamos analisar os documentos em relação a esta questão. Vamos entrevistar os funcionários envolvidos. Basicamente, como disse, trata-se da Política Agrícola Comum e das alterações que foram feitas, que pareciam tornar o que os agricultores tinham de fazer em relação à proteção ambiental um pouco menos dispendioso, um pouco menos difícil. E, claro, como se lembra, houve grandes manifestações de agricultores nesta cidade e noutros sítios. Foi na sequência disso que foram feitas estas alterações. Foi então que Organizações envolvidas na proteção ambiental ficaram preocupadas porque - de acordo com uma queixa que recebemos - as únicas pessoas consultadas foram as organizações agrícolas. Por isso, basicamente estamos a tentar perceber o que aconteceu, como é fizeram estas mudanças? Quem é que consultaram? O tiveram em consideração? E assim que tivermos as respostas, vamos tomar uma decisão sobre se fizeram isto de forma correta ou se precisamos de fazer recomendações em relação à forma como o vão fazer no futuro ou, simplesmente, lhes damos orientações gerais em relação à forma de gerir adequadamente estas questões específicas que preocupam muito os cidadãos.
Esta é então uma perceção de alguma injustiça no tratamento dos vários interessados nesta matéria?
Penso que sim. De certa forma, este tem sido um tema do nosso trabalho. Porque em todo o trabalho fizemos, se quisermos encontrar um tema geral, esse tema é a influência. Quem influencia os regulamentos, as leis que Bruxelas faz. Como sabe, Bruxelas é um enorme centro de lóbi, o segundo maior centro de lóbi do mundo, a seguir a Washington. Por isso, os cidadãos têm o direito de saber como são feitos os regulamentos e quem os influencia. Parte do nosso trabalho, quando recebemos queixas ou quando abrimos uma investigação por nossa iniciativa, é garantir que a Comissão, por exemplo, ou mesmo as outras instituições ouvem todos os lados e não tomam decisões demasiado inadequadas ou influenciadas por um dos lados do debate.
O lóbi, como disse, é muito importante. Mas a maioria dos agentes de lóbi estão registados e são bem conhecidos. O que pode ser um pouco mais secreto são os consultores, os especialistas que, de certa forma, são convidados. Em relação a este caso, há agora notícias de um académico alemão que pode ter recebido 150 mil euros por um período de seis meses para dar aconselhamento sobre agricultura. Isto também contribui para a perceção de que não há muita clareza na transparência sobre quem toma decisões ou quem é consultado?
Muitas pessoas falam da Comissão como sendo uma administração enorme e, na verdade, até é bastante pequena em comparação com as administrações dos Estados-membros. É óbvio que não tem internamente todos os especialistas que precisa quando está a fazer regulamentos ou a dar pareceres. Por isso, convidam vários especialistas dos diferentes setores sobre os quais estão a trabalhar. Uma das investigações que fizemos, há alguns anos, foi explorar o equilíbrio destes grupos de especialistas. E, claro, se formos uma grande empresa, à partida temos muito dinheiro e podemos pagar a muitas pessoas para serem os nossos olhos e ouvidos em Bruxelas e perceber o que se passa. Se formos uma ONG, uma ONG comum baixo orçamento, não temos a mesma capacidade de mobilizar muitas pessoas para descobrir o que quer que seja. Por isso, a Comissão tem a obrigação de garantir que as vozes das ONGs, da sociedade civil e de outros são tão ouvidas tanto como as outras vozes.
Pensa que este equilíbrio está melhor depois de todos estes anos que esteve envolvida nesta observação?
Penso que sim. Há uma maior consciência disso, certamente dentro da Comissão, tanto por causa do trabalho que fizemos, do trabalho que os media fizeram, como do trabalho da sociedade civil e que outros também fizeram. Mas às vezes ainda surgem problemas. Às vezes, estas coisas são analisadas caso a caso. Mas penso que, no geral, em termos de cultura, há uma maior aceitação da necessidade de um maior equilíbrio quando estão a ser decididas grandes questões de interesse público. A voz de todos tem de ser ouvida.
Um dos casos mais conhecidos a envolver Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, foi a troca de mensagens com o diretor executivo da Pfizer, durante a crise da covid-19, para um contrato sobre vacinas. A presidente recusou-se até hoje a divulgar esta informação, o conteúdo. Considera que se trata de má gestão mas, de alguma forma, a presidente não prestado muita atenção a estes conselhos ou estas críticas que recebe, pois não? Ela valoriza estas críticas?
O Tribunal Europeu de Justiça vai agora tratar de tudo. Depois vemos o que acontece. Fizemos uma série de perguntas e descobrimos haver má gestão, sobretudo porque inicialmente a Comissão não aceitava que estas mensagens SMS, mensagens de texto, fossem documentos. Mas não é preciso ser um génio ou um advogado para poder ler o Regulamento 1049 e ver que são documentos, porque não é o meio que interessa, é o assunto. Por isso, se está a enviar uma mensagem de texto, a enviar um Whatsapp ou o que quer que seja sobre questões que têm a ver com os negócios da instituição, isso são documentos. Não quer dizer que tenham de ser imediatamente divulgados. Podem ser verificados em relação às exceções que estão no Regulamento 1049. Mas encontrámos má gestão porque inicialmente não aceitaram que fossem documentos, mas na minha opinião obviamente que são. Portanto, não aconteceu nada em relação a isto. Critiquei a Comissão. E depois o New York Times, que foi o meio de comunicação que originalmente deu a notícia, levou agora a Comissão a tribunal. Não sabemos quando é que vai decorrer o processo judicial, mas penso que vai ser bom para todos. Vai haver uma clarificação por parte do mais alto tribunal da União Europeia sobre esta questão.
Mas acha que houve lições aprendidas, que de alguma forma Ursula von der Leyen corrigiu o comportamento neste sentido?
Bem, não sei o que ela faz todos os dias. Tenho a certeza que presta atenção, claro. Mas de certeza dentro da Comissão… Tivemos discussões com eles e sei que a Comissão já deu orientações aos funcionários em relação à preservação das mensagens de texto e à forma como estas devem ser devidamente registadas, publicadas e tudo isso. Por isso, penso que esta questão está a ser tratada na generalidade. Agora todos nós sabemos que se estivermos a fazer negócios no nosso WhatsApp, no Snapchat ou no que quer que seja, sobretudo se formos administração pública, (estas mensagens) podem ser divulgadas.
Como referiu, estas mensagens são documentos. Diria que o acesso a documentos é provavelmente uma das maiores queixas que recebe?
Sim, em geral a transparência é um grande problema. Penso que cerca de um quarto ou até mais das queixas que recebemos estão relacionadas com a transparência em geral e com o acesso a documentos. E como disse antes, é onde recebemos mais resistência. Em geral, dou-me muito bem com a Comissão, trabalhamos muito bem com eles e também temos acesso a documentos e a casos. Mas descobrimos que pode haver grandes atrasos. E quando os documentos têm questões que podem ser consideradas, digamos, politicamente sensíveis pela Comissão, então pode haver atrasos que vão para além dos atrasos permitidos pela lei. O ano passado, apresentei um relatório no Parlamento, um relatório especial no Parlamento em relação a isto. Só o fiz duas vezes nos últimos 11 anos. Isto mostra que considerei ser uma questão importante. O Parlamento apoiou, de forma esmagadora, o nosso trabalho e as recomendações que fizemos. Vamos ver o que acontece agora com a nova Comissão e se estas lições em particular foram aprendidas. Porque por vezes as pessoas pensam que questões como a transparência e o acesso a documentos são coisas que apenas dizem respeito às ONGs, à sociedade civil, aos académicos, ao provedor de Justiça. Mas têm uma importância vital porque, ao abrigo do Tratado (da União Europeia), os cidadãos têm o direito de participar na vida da união.
Diria que é uma cultura de secretismo ou é apenas porque, em termos de burocracia, é muito difícil dar acesso aos documentos?
Penso que não. Penso que o reflexo da maioria das administrações públicas é ficar na defensiva: “será que isto nos pode criar problemas?”. Mas a posição normal em relação ao acesso, nos tratados e na regulamentação, é publicar, é dar acesso. Assim que tiver acesso aos documentos, é preciso pensar: “como é que posso disponibilizar isto?”. Mas tende a ser ao contrário: “como é que posso impedir que isto seja divulgado se houver um problema específico?”. Quer dizer, a Comissão pode dizer: “distribuímos milhares de documentos e uma grande percentagem dos nossos pedidos são aceites”. Mas não estamos a falar da grande maioria dos casos. Estamos a falar daqueles casos em que são abordadas questões de grande interesse público sobre o ambiente, a defesa, segurança, relações internacionais, por exemplo...
Voltemos então à Comissão Europeia. Ursula von der Leyen foi reeleita, apresentou os 26 nomeados para o futuro executivo. O Parlamento Europeu vai escrutinar, numa primeira fase vai analisar o currículo e as declarações financeiras. Considera que o Parlamento tem ferramentas suficientes para escrutinar se existem de facto suspeitas de conflito de interesses?
É uma boa pergunta. O Parlamento tem certos poderes de investigação, mas não os mesmos poderes, por exemplo, da Procuradoria Europeia, por exemplo, ou do OLAF, a agência antifraude. Penso que sim, pode haver problemas com alguns comissários designados. Não faço ideia. Mas penso que o mais importante é saber se este Parlamento vai realmente cumprir o papel de ser um mecanismo de responsabilização da Comissão. Ou seja, garantir que a Comissão é responsabilizada. Ao longo do tempo, alguns parlamentos fizeram-no de uma forma muito forte. Outros nem tanto, como sabe. Por isso é provavelmente muito cedo para dizer quão forte vai ser este parlamento, em particular em relação à forma como responsabiliza a Comissão.
Recordemos então o escândalo de corrupção que envolveu membros do Parlamento Europeu no fim de 2022, o chamado Qatargate, que ainda está nos tribunais. Será que as novas regras são suficientemente fortes para impedir que os novos eurodeputados cometam irregularidades?
As regras foram reforçadas em relação à gravação das reuniões que estão a ter. Por isso, não podem simplesmente passear em privado e encontrar-se com pessoas, sobretudo se estiverem envolvidos num caso. Mas a nossa questão tem sido - embora estejamos satisfeitos com isso - qual vai ser o seguimento? O que acontece se alguém violar uma regra específica? Porque nem a Comissão nem o Parlamento - sobretudo o Parlamento - escaparam à autorregulação. Há uma comissão no Parlamento que analisa as alegadas violações dos vários códigos, regras e por aí adiante. Mas depois respondem à presidente e é a presidente que toma a decisão. Houve uma iniciativa para que especialistas independentes, pessoas independentes, integrassem esta comissão em particular, que acabou por ser rejeitada pelo Parlamento. Ou seja, as pessoas que estão na comissão são elas próprios membros do Parlamento. Mas tenho a certeza de que são boas pessoas, maravilhosas.
Na verdade, penso que foram muito críticos na altura em havia resistência para que o OLAF, o Organismo Europeu de Luta Antifraude, também analisasse os negócios deles. Isso deveria ser uma opção?
Esta tem sido uma grande questão entre o OLAF e o Parlamento. O OLAF acredita que, nos termos do seu estatuto, tem o direito de o investigar da mesma forma que investiga qualquer outra instituição... Pode entrar nos gabinetes, pode olhar para os computadores e assim por diante. O Parlamento discorda. Por exemplo, quando aconteceu o Qatargate, penso que foram os serviços de segurança da Bélgica e talvez de outros países que descobriram tudo. Não foi a nossa própria agência antifraude. E sei que o diretor do OLAF disse que o Parlamento precisa de lhes dar o mesmo acesso que as outras instituições lhes dão. Portanto, isto está ainda a decorrer.
Pode ser talvez o seu sucessor a lidar com isso. Outra questão muito importante durante estas transições após as eleições é que muitos funcionários, incluindo os comissários, saem e vão trabalhar para o setor privado. Este é o chamado fenómeno das portas giratórias. Há sinais de que desta vez as coisas podem ser diferentes? Porque já há casos, pessoas da Comissão, do Departamento da Concorrência, um diretor do Banco Europeu de Investimento... Então, isto é apenas a ponta do icebergue?
Penso que a presidente Ursula von der Leyen escreveu aos comissários cessantes a lembrar-lhes das obrigações em relação ao período de transição. E, mais uma vez, a questão é saber se isto vai ser monitorizado de forma adequada. Quando as pessoas partem, não é muito claro - se estiverem a violar alguns dos códigos que lhes deviam ser aplicados, regras ou protocolos – como é que isso vai ser monitorizado. Tem sido um processo muito lento conseguir que a Comissão em particular tente realmente mudar a cultura para um maior entendimento da razão pela qual isto é importante e dos danos que certos casos de “portas giratórias” podem causar.
Entre as instituições que a provedoria acompanha também estão as agências da União Europeia, nomeadamente a Frontex. É muito crítica em relação à Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira, sobretudo em relação ao caso da tragédia com o barco Adriana. Mais de 500 pessoas morreram no ano passado no Mar Mediterrâneo. Quais devem ser as alterações em termos de resgate no mar?
Estávamos a ver especificamente a Frontex, que é a Agência da Guarda Costeira e de Fronteiras, e, por isso, as pessoas esperavam que tivesse um papel na busca e salvamento. Mas eles foram muito claros e disseram-nos que não se trata de uma operação de busca e salvamento. Eles estão lá para monitorizar.
Estão a monitorizar... Isso deve mudar, do seu ponto de vista?
Sim, descobrimos, durante a nossa investigação, que não existe uma operação proativa de busca e salvamento na União Europeia.
Deve ser um trabalho conjunto europeu, como foi no passado, depois da guerra na Síria?
Exatamente. Muitas ONGs que tentaram fazer estas missões de resgate no Mediterrâneo foram ameaçadas com processos ou acusações. Verificámos também que a Frontex, depois destes incidentes acontecerem, fica sob o controlo das autoridades do Estado-membro que dirige a operação. Por isso, a Frontex não pode agir de forma independente. Em quatro ocasiões em que isto aconteceu, antes de o barco se virar, a Frontex tentou contactar as autoridades gregas para oferecer ajuda. As autoridades gregas simplesmente não responderam. A guarda costeira grega. Depois juntamos tudo isto e basicamente entregamos aos membros do Parlamento: este é o fosso entre o que os cidadãos provavelmente pensam que podem fazer e o que realmente acontece na prática, de acordo com a lei. E se quiserem corrigir essa lacuna, podem corrigir.
É necessário mudar a forma como a Frontex pode operar. O Pacto de Migração e Asilo é também outro desafio fundamental nesta matéria. Levanta questões não só de legalidade, mas também diria de justiça, de decência, de humanismo. Há agora esta política de externalização da gestão para países fora da União Europeia: para a Tunísia, o Egito, o Líbano.... Quais são os maiores riscos que vê nesta estratégia?
Foram feitos ótimos relatos sobre o que está a acontecer em alguns destes países. Ainda esta semana ou na semana passada, o jornal The Guardian, do Reino Unido, publicou uma grande reportagem sobre o que está a acontecer aos migrantes na Tunísia. E como sabem, a União Europeia tem agora um memorando de entendimento com a Tunísia, dá-lhe dinheiro em troca de ajuda para impedir a passagem de migrantes. E a própria Comissão sabe que isto é arriscado, porque não pode deixar de saber que estão a ser cometidos abusos.
Mas será que isso pode ser remediado agora, uma vez detetado e anunciado?
Seria de esperar que sim. Perguntámos à Comissão se tinha realizado uma avaliação do impacto sobre os direitos fundamentais antes de fazerem o acordo. Não, não fizeram. Mas têm cláusulas de direitos humanos nos contratos que fizeram com as organizações de implementação, os organismos que gastam o dinheiro na Tunísia.
Mais uma vez, monitorizar e acompanhar essas cláusulas.
Sim, exatamente. A questão é que, em primeiro lugar, é muito difícil fazer uma queixa em relação a sentir que os abusos ocorreram. Em segundo lugar, a questão é: será que a União Europeia está preparada para travar o financiamento ou recuperar o dinheiro se considerar que os direitos humanos estão a ser violados? Eu percebo que isto é politicamente difícil. A Europa está a deslocar-se para a direita e a migração é usada como um instrumento de poder por determinados grupos, determinados líderes políticos.
Estamos prestes a terminar a nossa entrevista. Referi que faz este trabalho há uma década. Qual é a principal conclusão que retira de toda esta experiência e das pessoas que conheceu ao longo deste tempo? E se pudesse dar conselhos ou sugestões ao seu sucessor, quais seriam?
O meu conselho seria: faça o que é suposto fazer. Eu digo que o provedor de Justiça Europeu é um gabinete pequeno com um grande mandato. É o cão de guarda de toda a administração europeia. Não é um pequeno escritório que lida com pequenas queixas mantém a cabeça baixa. Tem mesmo que ocupar este papel. E foi isso que tentei fazer nos últimos 11 anos.
Emily O'Reilly, muito obrigada pela sua contribuição para o nosso programa.
Obrigada por me convidar.